Um filósofo, suas origens e os esteriótipos

Por Raquel Satto

Filósofo, professor e militante negro e gay. Breve resumo da figura de Carlos Antônio – ou como ele é comumente chamado, Karlus Ayalla – mas que não explica a origem de seu pensamento, suas raízes e influências. Como chegou até aqui, com seu projeto de contos africanos e a defesa dos direitos da comunidade LGBT? Aos 37 anos, cita o avô ou um professor de história que foram importantes na sua história. A partir disso, compreende-se mais da construção de sua personalidade e suas escolhas de vida.

Raquel: Como foi sua infância e adolescência?

Karlus: Bom, eu nasci dentro do movimento negro, meu pai participava do Terno de Moçambique “Camisa Rosa” (um bloco de dança de Ituiutaba que faz parte de uma manifestação cultural e religiosa, envolvendo como temas a devoção a São Benedito, o encontro da imagem de Nossa Senhora do Rosário e a representação do combate entre mouros e cristãos) e minha mãe é até hoje Rainha Perpétua do Congo, então eu sempre estive nesse contexto de manifestação da cultura afro-brasileira. Hoje sou vice-presidente da Fundação Municipal Zumbi dos Palmares (fundada há 21 anos em Ituiutaba, cidade onde nasceu e ainda reside), que tem oficinas e aulas sobre temas da cultura afro-brasileira, e professor de Sociologia e Filosofia. Minha infância e minha adolescência foram dentro da religião católica mas com matrizes de religiões africanas, então eu me eduquei todinho com interferências dessas duas áreas. Eu era muito próximo do meu avô materno, que nesse ano fez 97 anos e é benzedor, trabalha com raízes e tudo. Ele me ensinou um monte de coisas, de orações. Meu contato com ele e com minha mãe era muito forte. Além disso sempre fui uma criança como qualquer outra, de brincar na rua, de correr, de sair pelas fazendas da região nas férias. Sempre muito dedicado aos estudos, agradeço isso ao meu pai porque ele tinha fazenda e eu odiava, nessa época, a ideia de morar numa fazenda, então tinha que fazer de tudo para não morar lá. Meu pai falava assim: “Se tiver nota vermelha, você vai mudar comigo pra fazenda, vai trabalhar comigo”. Aí eu me dedicava ao máximo aos estudos, lia, passava dia e noite estudando pra não ter que ir nunca.

R: E esse seu gosto pela área específica da Filosofia e da Sociologia teve inspiração em alguma pessoa?

K: Eu tive um professor de História chamado Moreira, que inclusive foi seminarista e saiu do seminário pra poder se casar. O jeito dele de lecionar sempre me deixou muito intrigado porque ele era muito crítico, apresentava a versão que estava no livro e sempre questionava. Lembro que na quinta série quando ele explicava pra gente sobre a descoberta do Brasil, falava que não era bem aquilo, e eu ficava me perguntando: “Mas por que ele fala isso? Ele é professor de história e o ‘trem’ tá escrito no livro”. Ele dava “ene” informações pra que a gente pudesse investigar outras versões, que contestavam. Quando eu fui conversar com ele, descobri um pouco da sua história – e foi aí que eu soube que ele tinha sido seminarista e que tinha estudado Filosofia – vi que aquela postura questionadora dele tinha muito a ver com o curso de Filosofia e me despertei para essa área. Comecei a ler romances filosóficos indicados por ele – como “O mundo de Sofia” e “O lobo da estepe” – antes de livros muito específicos. Num primeiro momento, quando eu terminei o segundo grau, prestei vestibular para Pedagogia e passei. Depois de quase um mês que estava fazendo o curso, saiu o resultado de que eu havia passado para Filosofia. Desisti de tudo e fui fazer faculdade em Goiânia. Me apaixonei pelo curso, é uma maravilha! Coisa de louco, abre a sua mente de tal forma que eu me lembro que quando retornei para Ituiutaba, depois de ter terminado o curso, os meus amigos falavam: “Nossa, você tá crítico demais!”. Realmente a gente fica assim porque expande a sua visão de mundo, dá direções para que você possa argumentar e contra-argumentar com as pessoas.

R: E antes da faculdade você já tinha um pensamento militante ou isso foi algo que se desenvolveu quando você já era mais velho? Em decorrência da sua participação no movimento negro, talvez?

K: Foi algo bem gradativo e paulatino, que começou especificamente no 2º grau, quando eu descobri o movimento estudantil. Antes eu era só frequentador, coadjuvante. Minha mãe fazia parte, meu pai, minhas irmãs, mas eu nunca dancei no Terno nem nada. Ia, assistia e acompanhava. Só depois, quando estava com 15 ou 16 anos anos que eu descobri a minha militância, fui presidente do grêmio estudantil do 2º grau. Aí eu fazia festa, promoções culturais, brigava pelos direitos dentro e fora da escola, e foi também quando eu comecei a minha militância partidária. E quando fui para a faculdade quis fazer parte do Centro Acadêmico: já fui diretor, vice-diretor e diretor cultural. É, foi por volta dos 16 anos mesmo, aquela idade da juventude que quer questionar, acha que sabe de tudo e quer pelo menos começar a pontuar alguns problemas.

R: A respeito de militância partidária, sei que você tem uma relação com a política e se candidatou recentemente a vereador. Como começou o seu interesse, qual foi sua trajetória até pensar nisso?

K: Minha mãe é da Igreja Católica Apostólica Romana e, dos movimentos eclesiais de base e suas comunidades (comunidades de pessoas das classes populares que vivem na mesma região unidas à Igreja e localizam-se em geral na zona rural e na periferia das cidades), então eu cresci dentro de uma fazenda comunitária que ia todo final de semana e tudo que era plantado era partilhado pelas pessoas que ajudaram a plantar. Toda minha formação política veio do movimento eclesial de base, que é uma formação inteiramente comunista. Quando eu era pequeno, ouvia minha mãe e as pessoas discutindo “O Capital” o tempo inteiro. Quando comecei a militar no movimento estudantil, foi com essa formação, mas não conhecia propriamente Karl Marx – só fui conhecer aos 17 anos, a ler suas obras realmente. Hoje sou filiado ao PT, mas eu tenho vínculo com todos os partidos de esquerda, minha proximidade é com esses partidos. Minha orientação e representação política dentro da sociedade de Ituiutaba é de esquerda, com base no comunismo, no socialismo, eu prego isso o tempo inteiro. Os meus alunos até brigam quando estou dando aula de Filosofia Política que eu me empolgo falando de Karl Marx, sobre o comunismo e “O Capital”, até meu timbre de voz altera, eles estranham. Quando falo sobre Filosofia Medieval e critico a Igreja não sou eu quem está criticando, é Marx.

R: É muito interessante quando o professor de Filosofia ou Sociologia começa a criticar algo assim, o aluno toma isso como pessoal, como se estivesse atacando a crença dele. O que você faz a respeito?

K: Geralmente apresento várias visões, vários pontos de vistas, para que ele entenda que quem está falando não é o professor, é o fulano, sicrano, beltrano. E pra que eles não tenham apenas a minha influência, porque apesar de saber que eu sou seguidor de uma linha, não estou apresentando a minha ideia, a minha concepção. Eles até costumam perguntar “E você, o que acha? Você acredita nisso?”. Eu digo que até posso expor a minha opinião, mas só depois que eles tiverem elaborado a deles. Eu trabalho com Filosofia para crianças também e achei muito engraçado uma vez que passei um exercício a partir de um livro infantil para uma turma do 4º ano, uma menina fez duas questões e na terceira disse que não ia fazer mais. Quando eu perguntei o porquê, ela disse: “Pra poder responder essas suas perguntas a gente tem que pensar. Não tem as respostas no livro, a gente tem que ler e entender”. Ela resumiu a Filosofia! Meus alunos do 2º grau também descobrem isso, que se não “inventarem” a resposta eles não vão sair do lugar. Às vezes eles me trazem respostas com as quais eu não concordo e dizem: “Mas porque você não concorda? Eu copiei do livro!” e eu digo que é por isso mesmo, tem que entender o que está escrito e formular uma própria resposta.

R: E é por isso que o ensino da Filosofia incomoda, porque ele faz pensar.

K: Isso! Incomoda e incomoda muito! Tem um professor de matemática nessa escola de 2º grau com o qual eu brinco muito na frente dos alunos falando que não é necessário aprender matemática, e sim aprender a usar uma calculadora, porque em qualquer lugar que você está, tem uma calculadora. E ele brinca que não é necessário aprender Filosofia porque o que conta é o que você pensa, então não tem o que aprender. Os alunos me perguntam “E aí, professor?” e eu digo que é a opinião própria que vale, mas ela deve ser fundamentada em alguma coisa e é isso que eu quero ensinar. É muito legal dar aula de Filosofia e eu tenho um linguajar muito próximo dos alunos, eu consigo fazer com que eles entendam Filosofia usando exemplos cotidianos deles. Não é fácil, eu pesquiso, tenho uma formação em Teatro e faço laboratório com meus alunos, eu ouço o que eles estão dizendo, frequento as mesmas festas e observo o que eles fazem. Eles até brincam “Não é pra você usar meu exemplo não, hein?”, eu digo que eu posso até não usar nomes, mas eu uso sim os exemplos.

R: Sobre o movimento LGBT da cidade, quais são as propostas da Associação da qual você é participante e como você acha que esse movimento converge com o movimento negro?

K: A Associação ainda está tentando buscar um rumo, porque quando ela se iniciou foi especificamente para poder fazer a Parada Gay de Ituiutaba. Já será a 5ª Parada e a Associação ainda foca o trabalho praticamente todo em cima da realização dela. Eu faço parte de um outro grupo formados por intelectuais, todos de Ituiutaba e do movimento LGBT, que tem a intenção de propor algo além e por isso começamos com o Café com Ideias (palestra com membros do movimento sobre diversos assuntos dentro da temática LGBT). Nosso grupo propõe formação acadêmica, discute a formação de professores, de policiais e profissionais da saúde ao lidar com o público LGBT. O policial que vai tratar de um crime de preconceito tem que saber o mínimo de leis. Quando eu prestei queixa contra um bombeiro preconceituoso só consegui porque tinha noção que a lei exista. Já teve delegado que disse que não existe “esse negócio de crime de preconceito” e impossibilitou um rapaz homoafetivo que havia sido agredido de prestar queixa contra o agressor, dono de uma churrascaria, por motivo de homofobia. Falta informação às pessoas nesse sentido. Numa escola, teve um problema porque as alunas travestis queriam que fossem chamadas pelo nome social e não pelo de batismo, e a diretoria não queria permitir sendo que existe um acordo a nível estadual entre a secretária de saúde e a defensoria pública de que podem usar o nome social. Eu tive que ir na escola e conversar com os professores e diretoria porque eles não sabiam. Nem as alunas sabiam. A preocupação e o objetivo do nosso grupo é realmente dar um caráter de incentivo ao estudo, de orientação ao que diz respeito ao movimento. Nós também temos a preocupação de estudar os temas afro-brasileiros juntamente com os LGBT, sempre procuro textos sobre a cultura afro. No meu projeto de Filosofia para crianças, o Griot’s, eu utilizo apenas contos africanos e é um trabalho único na cidade. Isso é muito importante para a identificação como cultura africana que até meus alunos do ensino médio não reconhecem como tal. Eles já visualizaram tanto um tipo de cultura africana, de escravos, de pessoas sofridas que quando eles veem as belezas da África parece algo novo. Tento inserir essa discussão nas minhas aulas e nas palestras. Sobre o movimento LGBT e o movimento negro ainda existem muitos esteriótipos que precisam ser quebrados.

Sempre tentando quebrar paradigmas, Karlus se pergunta sobre os esteriótipos presentes na comunidade LGBT e é criticado por questioná-los tão incisivamente. Ainda confirma que o papel das instituições de ensino e o estudo em geral é acabar com preconceitos e pretende continuar trabalhando para que isso aconteça. É o filósofo em busca do “esclarecimento”.