A década em que fomos ao cinema

Os filmes (e os espectadores) brasileiros roubam a cena entre 2002 e 2012

Por Ariadne Selene, Danilo Moreira, Edmar Borges e Marília Ferreira

Não é difícil embarcar na mentalidade do brasileiro com relação ao cinema do próprio país. Da pornochanchada a uma nova era das Artes Visuais, a produção cinematográfica nacional tem passado por altos e baixos desde a década de 1960, quando o estúdio Vera Cruz tentou otimizar a qualidade do cinema brasileiro com produções sérias e preocupadas com a estética hollywoodiana. Na década seguinte, as produções eróticas que lotaram as salas de cinema do país dominaram o cenário nacional e por muito tempo abreviaram tudo o que os brasileiros sabiam sobre o cinema do Brasil. Segundo alguns especialistas, a “retomada” estaria acontecendo desde 1995, com a produção Carlota Joaquina: A Princesa do Brasil. Mas a expressão é discutível. Na opinião de outros, não se pode retomar o que nunca existiu. É possível dizer, portanto, que estamos em uma fase cinematográfica brasileira nova e incomparável? O que delineia isso, e de que forma? Conheça na reportagem a seguir o cinema brasileiro feito para os brasileiros. E descubra se eles estão gostando disso.

Cena de Cidade de Deus, de Fernando Meirelles (2002).

Cena de Cidade de Deus, de Fernando Meirelles (2002).

A Evolução

Filme brasileiro para espectador brasileiro

A história do cinema no Brasil começou há quase 100 anos, com a produção de filmes mudos e a divulgação por meio de colunas informativas nos veículos de comunicação da época, sempre tentando acompanhar o ritmo norte-americano. Entre os anos de 30 e 40 do século 20, o cinema nacional ficou limitado a comédias populares e, mais tarde, com o surgimento do estúdio Vera Cruz, a produções industriais e sérias. Na década de 70, o gênero “pornochanchada” caracterizou o cinema da época e rendeu grandes bilheterias. Com o fim da obrigatoriedade das cotas de exibição de filmes nacionais nos anos 80, iniciou-se a decadência do estilo. A partir de então, o cenário cinematográfico brasileiro foi marcado por surtos regionais e identidades artísticas diversas. Segundo a professora Mirian Alves, mestre em Artes Visuais pela York University, o cinema brasileiro é feito de ciclos. “Nunca existiu uma história contínua do cinema nacional. Sempre foi muito difícil fazer cinema no Brasil, porque não existia essa identidade geral”.

Em 1995, com o lançamento de Carlota Joaquina: A Princesa do Brasil, uma tentativa americanizada de se contar a história do país por meio do cinema, iniciou-se o que alguns especialistas chamam de “retomada” da produção cinematográfica nacional, uma expressão controversa que aponta a década de 90 como denominadora do processo de ascensão do cinema no país. No entanto, na opinião de Virgílio Souza, ex-redator do site Cinema em Cena e crítico do site Pipoca Combo, a ascensão do cinema brasileiro tem raízes anteriores, mas “foi ali que se manifestou alguma reação após anos de encolhimento do mercado nacional, pela limitação de recursos para se investir em cinema, na década anterior, e em função da extinção da Embrafilme e do Concine por Collor”, afirma. Ele diz ainda que as leis de incentivo e o aprimoramento técnico contribuíram para a revitalização da produção no Brasil, o que, segundo ele, “acabou gerando maior atenção do público, maior retorno em bilheteria e um destaque maior em termos de reconhecimento crítico”.

Com a virada para o século 21, o cenário de sucesso e repercussão das produções nacionais ganhou ainda mais destaque. Madame Satã, por exemplo, lançado em 2002, venceu 21 das 35 indicações concorridas em vários festivais e eventos de cinema do país, como o Grande Prêmio do Cinema Brasileiro, e até no exterior, como o Festival Internacional de Filmes de Chicago. No mesmo ano, o aclamado Cidade de Deus chegou às telas dos cinemas de todo o mundo. A superprodução de Fernando Meirelles, que retratou o crescimento do crime organizado no Rio de Janeiro e o contexto social de uma das maiores periferias da cidade, recebeu críticas positivas e repercutiu no exterior de forma surpreendente. Foi apontado pela revista Time como um dos 100 melhores filmes da história e está entre os 25 com melhor avaliação no site IMDb (Internet Movie Database), com base na opinião de críticos e usuários. Além disso, concorreu a quatro indicações na premiação de cinema mais cobiçada do mundo, o Oscar, dentre elas na categoria Melhor Direção e Melhor Roteiro Adaptado (Bráulio Mantovani).

Repercussão

Sucesso nas bilheterias e nas críticas

Cena de Tropa de Elite 2, de José Padilha. (2010)

Cena de Tropa de Elite 2, de José Padilha (2010).

Os padrões no cinema popular brasileiro geram atualmente grandes números de público e faturamento. Tropa de Elite 2, de 2010, obteve mais de 11 milhões de espectadores no país. É o recorde nacional. Filmes como 2 Filhos de Francisco e Se Eu Fosse Você 2 também ultrapassaram a marca de 5 milhões de brasileiros que os assistiram. Por uma visão geral, estas marcas são ótimas, mas esse é um processo recente. Mirian Alves acredita que “havia um preconceito com o cinema brasileiro por ele ter ficado conhecido, há muito tempo, como produtor de ‘pornochanchada’, e o senso comum absorveu isso”. Segundo ela, a partir do momento em que as pessoas perceberam uma inovação no panorama cinematográfico do país, elas passaram a se interessar mais pelas sessões de filmes nacionais. Na opinião da professora, produções como Tropa de Elite, que retratam a realidade de muitos brasileiros, repercutiram graças a um interesse especial dos espectadores em conhecer o Brasil por meio do cinema. Ainda assim, informação não é o único atrativo que leva as pessoas ao cinema. Se Eu Fosse Você, por exemplo, de 2006, ganhou os prêmios especiais Contigo! de Audiência e de Júri nas categorias de Melhor Atriz (Glória Pires), Melhor Ator (Tony Ramos) e Melhor Filme. É uma produção voltada principalmente ao entretenimento, cujo sucesso pode ser observado, por exemplo, em comentários positivos na rede social de cinema Filmow e também pela elevada bilheteria arrecadada pela sequência.

No geral, filmes produzidos aqui conseguem até mesmo superar produções estrangeiras. Entretanto, Virgílio Souza observa o maior problema desse cenário: “produz-se mais do que antes, mas distribui-se menos ou de uma forma desigual, baseada num modelo quase que exclusivamente comercial, que trata cinema só como mercadoria, jamais como arte”.

Premiação – O quanto vale e para quem

As dificuldades de reconhecimento e a busca por visualização nacional

Cena de Trabalhar Cansa, de Juliana Rojas e Marco Dutra. (2011)

Cena de Trabalhar Cansa, de Juliana Rojas e Marco Dutra (2011).

Existe uma questão no cinema brasileiro que problematiza o cenário do reconhecimento. Alguns filmes nacionais bastante premiados em festivais do exterior, infelizmente, não são muito conhecidos no Brasil, pelo menos não pela grande maioria do público. Isso acontece porque, muitas vezes, essas produções quase não são colocadas em cartaz, já que não seriam o principal foco do espectador médio. Um exemplo é Trabalhar Cansa, de Juliana Rojas e Marco Dutra, que não teve reconhecimento no Brasil, mas foi exibido no Festival de Cannes (França) em 2011 e recebeu o Prêmio Cidadão Kane de Diretor Estreante no Festival Internacional de Cinema Fantástico da Catalunha – considerado o mais importante do gênero.

Esse problema na distribuição dos filmes e também do domínio da lógica publicitária e industrial fazem com que filmes de menores proporções acabem com pouco ou quase nenhum espaço. Isso se comprova na dificuldade de acesso aos filmes, tanto nas salas de cinema quanto na internet. Virgílio Souza acredita que “é importante superar alguns tabus e oferecer ao público acesso cada vez mais fácil a este ‘outro’ cinema – que pode ser melhor ou pior, mas que basta por ser diferente”.

A era “globochanchada”

As opções do espectador – e as preferências

Cena de Se Eu Fosse Você 2, de Daniel Filho. (2009)

Cena de Se Eu Fosse Você 2, de Daniel Filho (2009).

Por outro lado, muitos filmes nacionais que não entram na disputa por prêmios possuem grande público. Durante o período em que ficam em cartaz, são exaustivamente divulgados pela mídia, que está o tempo todo instigando os telespectadores do país a consumirem suas produções. O caso mais conhecido é o da coprodutora Globo Filmes, braço cinematográfico da TV Globo, a maior rede de televisão do Brasil.

Com o lançamento, em 2003, da produção da Globo Filmes Xuxa Abracadabra, a história da bibliotecária Sofia, interpretada pela apresentadora de TV Xuxa Meneghel, levou mais de 2 milhões de adultos e crianças aos cinemas de todo o país. Xuxa, que protagonizou muitas outras produções da Globo Filmes, trabalha na Rede Globo desde 1986. Esse não é o único exemplo de um filme com seu nome que arrecada grande número de bilheteria. A Xuxa Produções, vinculada à Globo Filmes, é responsável pela criação de 17 longas desde 1989. Xuxa Requebra, de 1999, também foi assistido por mais de 2 milhões de brasileiros nos cinemas. Cinco anos depois, Xuxa e o Tesouro da Cidade Perdida obteve um público de mais de 1 milhão de pessoas e, em 2009, Xuxa em o Mistério da Feiurinha seguiu o mesmo caminho. Isso ilustra, com clareza, a facilidade do público brasileiro em consumir essas produções.

Renato Aragão, comediante consagrado da TV brasileira, também é um nome forte no cinema nacional. Seu personagem Didi estrelou um total de quase 50 filmes na sua carreira, muitos vinculados ao grupo humorístico “Os Trapalhões”, que fez muito sucesso no Brasil entre as décadas de 60 e 90. Assim como Xuxa, Aragão possui sua própria produtora, a Renato Aragão Produções Artísticas. Entre seus filmes mais recentes que obtiveram maior número de público estão Didi, o Cupido Trapalhão (quase 2 milhões de pessoas), em 2003, e Didi, o Caçador de Tesouros (cerca de 1 milhão de pessoas), em 2006.

É possível, ainda, encontrar relação entre séries de televisão globais e produções cinematográficas, como é o caso de Os Normais, A Grande Família e Cidade dos Homens, seriados que inspiraram filmes. O inverso também ocorre. A Mulher Invisível, série de 2011, foi baseada no filme de mesmo nome lançado dois anos antes. Outro processo que acontece é a exibição de filmes divididos em capítulos na televisão, como no caso de Chico Xavier, lançado em 2010 e transmitido pela Rede Globo em quatro partes no ano seguinte, e de Gonzaga: de Pai para Filho, filme de 2012, em janeiro deste ano. Esse artifício é usado para atrair o espectador por todos os lados, de forma que ele fique compelido a conhecer a obra mesmo que não tenha interesse inicial nela. Como há uma exaustão de produções da TV Globo no Brasil e a construção de uma rede entre os processos de divulgação, exibição e arrecadação, Virgílio chama esse fenômeno de “globochanchada”, fazendo referência ao antigo gênero do cinema nacional que o marcou por muitos anos, a pornochanchada.

Perspectivas

O que o futuro do cinema brasileiro promete

Cena de A Febre do Rato, de Cláudio Assis (2012).

Cena de A Febre do Rato, de Cláudio Assis (2012).

Entre os anos de 2002 e 2012, 50 milhões de pessoas foram aos cinemas assistir aos filmes aqui citados. Ao que tudo indica esse número só tende a crescer. Mas o que o público ainda espera?

Ao ser interrogado sobre o tema, Anderson Ferraz, graduando em Relações Públicas pela PUC-Campinas, critica: “Falta ensinar a arte do cinema desde pequeno para as crianças; mais incentivo cultural”. Lacunas como essas e também da distribuição dos filmes são dribladas aos poucos, uma vez que este ambiente cresce com grande potencial técnico e consequente credibilidade. E para isso, o exterior tem contribuído significativamente, segundo Virgílio Souza. Ele acredita que os festivais internacionais são uma primeira forma de divulgação dos filmes brasileiros e também que a saída de atores do país contribui para a consolidação da imagem do cinema nacional, como é o caso de Rodrigo Santoro (300, de 2006), Alice Braga (Ensaio Sobre a Cegueira. de 2008) e agora de Wagner Moura (Fellini Black & White, de 2013). É possível observar também que alguns diretores, após se destacarem no Brasil, ganharam espaço no exterior dirigindo produções internacionais. Isso ficou claro primeiramente com Fernando Meirelles (Ensaio Sobre a Cegueira, de 2008), depois com Walter Salles (Na Estrada, de 2012) e José Padilha (Robocop, previsto para 2014).

Filmes de 2012, como A Febre do Rato e O Som ao Redor, evidenciam novas produções de qualidade e recebem críticas positivas, criando um cenário de boas expectativas para os próximos anos. Com essa perspectiva somada ao crescente número de público nos cinemas, o resultado é uma projeção significativa e abrangente para a produção cinematográfica brasileira.