Experiência que rompe o mito

A ruptura de tabus sobre práticas de cunho religioso

por Inaê Martins, Letícia Afonso, Raquel Satto, Sandro Aurélio

Práticas de caráter religioso moldam a sociedade por estarem presentes em seu histórico cultural e cotidiano. Apesar de algumas serem mais comuns para a maioria das pessoas, as mais desconhecidas se tornam mitos e que eventualmente carregam tabus.

Propusemos-nos a vivenciar essas práticas, que inclusive para nós não eram conhecidas. Tínhamos vontade de saber mais sobre como são realizadas e, para isso, selecionamos três que estão presentes na cidade de Mariana (MG): A Igreja Universal do Reino de Deus, o Espiritismo do Grupo Espírita Amor e Luz, e a Umbanda do Centro Espírita Mãe Maria de Angola.

Nessa reportagem vamos descrever essas experiências e expor declarações de algumas pessoas que entrevistamos e que vivenciam com frequência essas práticas.

“Jesus Cristo é o Senhor” : oração e descarrego

A Igreja Universal do Reino de Deus pertence à vertente cristã evangélica neopentecostal. Essa corrente mescla o movimento cristão protestante (evangélico) e reúne denominações originadas no pentecostalismo clássico (corrente de renovação dentro do cristianismo) e também das igrejas cristãs tradicionais (Batistas, Metodistas etc.).

Ao chegar à igreja, localizada num bairro próximo ao centro da cidade de Mariana, um pastor de 16 anos estava na recepção. Com ele fomos conversar e nos apresentamos como estudantes de Jornalismo. Ele perguntou qual o nosso objetivo lá e respondemos que faríamos uma reportagem. Como não podia fazer afirmações que não o dissessem respeito, por ser recém-chegado àquela unidade, falou para, no final do culto, abordarmos o pastor mais antigo que comandaria a reunião daquela noite.

Entramos receosos e esperamos o início da pregação, marcada para 19h30. A igreja acomodava gente de todas as idades. Durante o culto de terça-feira, que é o dia voltado para a cura, o pastor por diversas vezes chamou as pessoas para perto do altar prometendo resolver os males físicos, emocionais e financeiros. Sobre este último, o pastor falou da importância da oferta que gera bênção  Neste momento, perguntou quem tinha problemas financeiros e pediu para que essas pessoas pegassem qualquer quantia de dinheiro que portassem dizendo que iria abençoá-lo. Depois, pediu para que oferecessem tal quantia para a igreja e justificou esse ato explicando que elas seriam recompensadas quatro vezes mais.

Como não estávamos acostumados, achamos peculiar a forma com que o pastor desenvolveu o culto e nos “descarregou”. Assim como as pessoas que se propuseram a receber a bênção do pastor, ele veio até nós, mesmo sem nos manifestar, e perguntou se poderia orar por nós. Colocou a mão em nossas cabeças, pressionando-as e fazendo movimentos circulares ao mesmo tempo em que balbuciava palavras incompreensíveis que se tornaram gritos de cura aos nossos males. O pastor e seus obreiros abençoaram nossos trabalhos, nossos estudos e nossos cabelos que não condiziam aos seus padrões.

A bíblia foi citada poucas vezes durante o culto, que teve como um dos seus momentos de ápice quando um homem subiu ao altar “possuído”. As mãos dele estavam nas costas e o corpo inclinado para frente, falava com uma voz rouca e grave – do demônio – para que não saíssemos durante o carnaval, pois fariam mal às pessoas nos locais onde os demônios ficariam presos. Após conversar por aproximadamente 10 minutos com o demônio, o pastor exorciza o homem que volta ao seu estado normal e desce do altar.

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Seu Francisco. foto: Inaê M.

Durante o culto foram distribuídas correntes feitas de papel com escritos de libertação, sabões e uma água especial para abrir os caminhos. Com esses objetos as pessoas deveriam fazer um “banho de fé”, que já teria abrerto o caminho de várias pessoas. Uma delas é o Seu Francisco, de 58 anos. Ele foi um dos primeiros a visitar a unidade da Igreja em Mariana, que está na cidade há 8 anos, e foi por indicação. Declarou não ter feito juízo de valor antes de ir à Universal. Ele disse que, após começar a frequentar a igreja, sua vida melhorou 99%. Contou-nos ainda que havia enfartado seis vezes. Emocionado e com lágrimas nos olhos, lembrou o diagnóstico médico de que morreria em pouco tempo. Por esse motivo, pediu e implorou “vida” a Deus. E Seu Antônio considerou que está aqui (vivo) até agora por causa da Igreja e de sua fé.

“A possibilidade de várias existências” : espírito e luz

O Espiritismo (ou Kardecismo) não é considerado religião e sim uma doutrina de cunho científico-filosófico-religioso, devido ao uso de metodologia científica e seus questionamentos, unidos às crenças de reencarnação, comunicação com os espíritos, dentre outras.

Antes de comparecermos à reunião no Centro Espírita Amor e Luz (ou Grupo Espírita Amor e Luz – GEAL), falamos com um dos fundadores do Centro, Livâneo. Além de uma conversa sobre alguns preceitos do Espiritismo e as dificuldades da fundação e da continuidade do trabalho espírita, ele nos falou sobre as indagações pessoais que o levaram a adentrar nos estudos espíritas: “Eu me interessava muito em saber, por exemplo, porque uma pessoa nascia doente na mesma família de outra que nascia sadia. Porque uma nascia em berço de ouro e outra nascia pobre. Quer dizer, se Deus é justo – e se é que ele existe, qual o critério? E essas respostas a gente não achava, entendeu? O Espiritismo explica isso”.

Na noite da reunião, pegamos o ônibus para o Bairro São Cristóvão e, chegando ao local, avistamos um prédio cinza com um portãozinho laranja. Uma moça nos recebeu perguntando se era nossa primeira vez no grupo espírita, ao que respondemos afirmativamente. A reunião havia acabado de começar e nos sentamos enquanto Livâneo fazia as preces iniciais para, a seguir, apresentar o palestrante do dia. Enquanto discorria sobre o tema principal – problemas em relacionamentos -, o palestrante trazia exemplos de seu cotidiano e como eles poderiam ter sido evitados com calma, conversa e entendimento. Conforme ele falava sobre os passos que levam ao entendimento mútuo nas relações interpessoais, um sentimento de que não estávamos ali por coincidência ou acaso nos invadiu. Podíamos estar apenas sob influência das palavras dos entrevistados, mas foi o que sentimos.

Depois da reflexão proposta, fizemos as preces finais e passamos ao último momento, o passe. Como nos explicaram, o passe consiste em transferência de “fluidos” ou “energias” vitais de uma pessoa (o passista) para outra. Entramos em uma sala escura, com apenas algumas lâmpadas acesas, criando o efeito de meia-luz, e nos sentamos em cadeiras. Os passistas se aproximaram e ficaram em pé posicionando as mãos sobre quem recebia o passe, sem tocá-las, sussurrando palavras incompreensíveis – provavelmente orações. E para nós foi impossível, durante todo esse ritual, não sentir alguma coisa.

Ao sairmos da sala do passe, voltamos ao salão principal e seguimos para fazer entrevistas com o atual presidente do Grupo, Arlindo Flausino, e dois membros, Sandra de Nogueira e seu marido, Paulo. À medida em que questionávamos sobre os motivos que os levaram ao espiritismo, a explicação era sempre parecida: a busca por respostas, muitas vezes em momentos dolorosos da vida. E assim como Livâneo nos disse na entrevista, com o objetivo de promover um debate plural, o Grupo recebe oradores e ouvintes de diversas religiões.

foto: Raquel S.

foto: Raquel S.

Como os próprios fundadores do GEAL explicaram, a organização não tem fins lucrativos, portanto a ajuda dos membros foi primordial para a criação do Grupo. Seja na doação de materiais que faltam, no auxílio em eventos de arrecadação de dinheiro ou até como mão-de-obra pesada, toda ajuda é considerada de imensa importância. Até hoje, com mais de 10 anos de existência, o prédio ainda não tem uma cozinha, por exemplo. Segundo os membros, ainda estão arrecadando verbas, mas é um trabalho difícil.

Fomos bem recebidos com relação às entrevistas, perguntas e fotos e convidados a retornar sempre que quiséssemos. Saímos com curiosidade para saber mais sobre essa doutrina tão antiga. Pegamos uma carona com a fonte havia nos passado o  contato do Centro e voltamos para casa mais reflexivos do que horas atrás.

“Mãe Maria de Angola”: benção e comoção

A Umbanda é uma religião que nasceu no início do século 20 e mistura de elementos presentes em várias crenças existentes no Brasil – africanas, indígenas, católicas e do Espiritismo. Uma de suas práticas mais recorrentes é a incorporação, que consiste em dar abertura para uma entidade espiritual unir-se ao corpo físico de um médium e manifestar-se por meio dele.

Procuramos muito até que soubemos de um centro de Umbanda num bairro próximo ao centro da cidade, mas ainda com informações incertas. Quando encontramos o Centro Espírita Mãe Maria de Angola, nos informaram que ele já contou com uma quantidade de médiuns necessária para realizar sessões maiores, porém hoje em dia fazem apenas benzimentos individuais. Nos pareceu então já ter tido mais força durante seus mais de 20 anos.

Em nossa procura por um lugar destinado à Umbanda, sentimos que ela perde espaço e sofre por ter sido desconsiderada como prática religiosa, tendo em vista o modelo de religião presente na sociedade e observada em Mariana.

Era uma noite de sexta feira, e no Centro Espírita Mãe Maria de Angola, organizava-se mais uma sessão de consultas marcada para às 20h, destinada a benção. Usando sua simbólica experiência de quem já viveu e pode ajudar com seus conselhos, a Mãe de Santo, guia espiritual, e chefe da casa com suas duas médiuns se preparavam para tais sessões. E uma dessas médiuns, incorporou o “Preto Velho”, um sábio espírito de luz que vem para trazer paz e abençoar as pessoas usando a simbólica experiência de quem já viveu e pode ajudar com conselhos.

Sala de espera. foto: Inaê M.

Sala de espera. foto: Inaê M.

Como a reunião que presenciamos era nossa primeira, perguntaram se queríamos conversar com a Mãe de Santo do centro antes de iniciarem as consultas. Decidimos que apenas um de nós entraria (eu, Letícia). Dentre os objetos existentes na sala, havia bonecas, imagens de santos, além de um cheiro característico de incenso. A Mãe de Santo estava sozinha, falava devagar e refletia em pensativas palavras do alto de seus quase 100 anos. Sentei ao seu lado e ela perguntou por que eu tinha ido procurá-la; eu falei de algo que realmente busco, que é paz interior. E o que me abalou muito foi quando ela descreveu minhas sensações, além de detalhes sobre minha vida. Então saí da sala, sentindo-me mais energizada do que antes.

E novamente esperamos do lado de fora até que pudéssemos ser abençoados. A médium começou a incorporar, e só pudemos ouvir vozes, que gradualmente ficavam mais altas, vindas do recinto. Dessa vez, nos chamaram a entramos juntos e um a um fomos benzidos pelo Preto Velho. Ao deixar o ambiente estávamos pensativos com as palavras destinadas a cada um de nós.

Não soubemos explicar se estávamos predispostos a nos abalar daquela forma, mas de acordo com “Cida” Satto, professora da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP), e médium, “não se pode ter medo do desconhecido, você nem provou e diz que não gosta”. Perguntamos a ela como é a experiência de incorporação, e ela disse que tinha consciência parcial do que acontecia, porém nenhum controle. E ainda disse que não devemos manter definições de certo e errado sobre qualquer fenômeno que desconhecemos.

Após essas experiências, notamos que todas essas religiões ou doutrinas continham pessoas que buscaram nesses lugares certo refúgio para se sentirem bem. E que as nossas concepções acerca dessas crenças não alteram, e provavelmente nunca vão alterar, a fé dessas pessoas. Ou seja, independente de convicções, todo mundo procura uma forma de se apoiar em algo e se proteger das angústias que cercam as relações da vida cotidiana.