Não é só em Olinda

O que há por dentro dos bonecos gigantes nas cidades de Ouro Preto e Mariana

Por Bárbara Andrade, Daiane Aparecida, Natália Goulart, Lucas Araujo e Thatiana Freitas.

O Carnaval de Olinda é marcado pelo desfile de Gigantes nas ruas da cidade, porém bonecos de carnaval são uma tradição em várias partes do país. A região dos Inconfidentes em Minas Gerais não foge a este costume e alguns blocos contam com bonecos gigantes. Os blocos do Zé Pereira dos Lacaios e Mesclado em Ouro Preto, e o do Zé Pereira da Chácara em Mariana são exemplos de como nascem esses personagens.

Nos parágrafos seguintes, segue os relatos de pessoas que fazem parte desses blocos, suas experiências com os bonecos e principalmente a história viva dos gigantes do carnaval. Para apresentá-los, as repórteres Natália Goulart, Thatiana Freitas, Daiane Aparecida e Bárbara Andrade, foram conhecer o que tem por trás desses bonecos, e quem são esses curiosos personagens.

Zé Pereira dos Lacaios

Natália Goulart

Que calor de carnaval me invadia as pernas. O rosto encharcado de suor. Ouro Preto. E lá estava mais uma vez: a bota pisando célere nas pedras agitadas em busca daqueles bonecos antigos, ainda vivos em corpo e alma. Os bonecões do Bloco do Zé Pereira dos Lacaios. Não, mais do que isso. Os bonecos e aqueles que lá dentro se mesclam em outros personagens.

A visão por dentro dos bonecos. Foto: Natália Goulart

A visão por dentro dos bonecos.Foto: Natália Goulart

Cheguei ao início da tarde, no primeiro dia, antes do carnaval começar. A festa onde quase tudo se vive seguindo uma pequena grande parte do inconsciente. Uma explosão de confetes e purpurinas. A sensação de vestir outra fantasia que só é permitida no carnaval, na contramão das regras dos dias comuns.

Descia a Rua Antônio Dias e a energia dos vizinhos enfeitando a rua, dizia sobre a euforia dos corpos, os desejos a mostra. E segui sem saber o que iria encontrar, sem pesquisar as historinhas contadas na internet sobre datas e fatos históricos. Não que estas não sejam importantes, mas os passos eram outros.

Fui perguntando aos que encontrava se conheciam alguém que levava aqueles bonecos gigantes. E nada. Troquei a pergunta:

- Você sabe onde fica a sede do Bloco do Zé Pereira dos Lacaios? Perguntei àquele artista que pinta telhados em cima de telhados.

E respondeu disposto:

- sabe aquela subida lá, perto do clube? É lá!

Continuei o caminho e lá em cima, perto clube, encontrei três vizinhas conversando no passeio. Muito simpáticas, me levaram até a casa da Glória. Bati na porta antiga, de um azul desbotado e depois de alguns minutos ela apareceu.

O pai dela desfilava no bloco e fora um dos sócios fundadores do clube, mas falecera. “A chave da sede por anos e anos ficou aqui em casa. O bloco do Zé Pereira deu muito trabalho pra nós”, relata com olhos incansáveis de fazer parte de tamanha história.

A sede estava fechada e tive medo de não conseguir falar com nenhum dos bonecos, quer dizer, aqueles que se vestiam de bonecos. Mas aí a Glória, muito sagaz, me ajudou e, em seguida, apareceu o Juan.

- Uai! Meu irmão desfila no boneco.

- E a sua casa é perto?

- É aqui pertinho.

Pois conheci o Lucas Júnior da Silva Goberto, 17 anos, que desfila desde os sete no bloco. Com a cara ainda coberta de sono, o convidei para sentar ali mesmo, na vereda, em frente à sua casa. Conversamos por quinze minutos. E o olhar ingênuo dele me dizia sobre a minha ingenuidade bastante perdida. No início, a voz tímida, depois se soltava devagar. O olhar que fugia do meu, as mãos ansiosas a cada resposta que dava.

O Lucas incentivou o irmão mais velho, a sobrinha e talvez, mais adiante, o bairro inteiro. Apaixonado pelos bonecos, pela alegria do carnaval, ele diz que jamais pensou em não desfilar. “Se eu não desfilar acho que vou perder a amizade dos meninos. Lá na sede eu faço de tudo. Ajudo a reformar os bonecos, a encerar o chão. Quando não faço nada em casa, a gente vai pra lá” relata com satisfação.

O maior inimigo dos bonecos é a chuva. As tintas saem com água e quando chove, os personagens não entram no grande palco, a rua.

O boneco que o Lucas mais gosta é o Waldir do Rádio, o único homenageado ainda vivo. Um homem de quase 70 anos que andava com um radinho de pilha na mão a pedir outros.

- E ele é um boneco animado? Pergunto a ele.

- Ele é!

- Por que você o anima?

- Porque as outras pessoas acham que ele é animado.

“Quando a gente entra ali, a gente vira um personagem, a minha emoção só aumentou” ele diz.

- Você gosta de ficar escondido ali dentro?

- É.

Depois da entrevista com o Lucas, desci para a sede e coloquei uma cabeça de boneco na cabeça. Realmente, a sensação é a de que outro personagem se mistura com os nossos desejos escondidos do lado de dentro. No último dia, na terça-feira de carnaval, vi o desfile do bloco na Praça Tiradentes e entendi que às vezes é preciso travestir-se para dar conta das purpurinas do inconsciente.

 

Zé Pereira da Chácara

Thatiana Freitas

A história do Zé Pereira dos Lacaios se mistura com a do Zé Pereira da Chácara, bloco carnavalesco de Mariana, pois têm sua criação mais ou menos na mesma época. Em busca dessa história, corremos as duas cidades em busca de pessoas que pudessem nos levar a descobrir a magia que há nesses blocos, que levam tanta felicidade aos foliões que vem se divertir em nossa região.

Bonecos do Zé Pereira da Chácara. Foto: Natália Goulart

Bonecos do Zé Pereira da Chácara.Foto: Natália Goulart

Mas quem são estas pessoas que dão vida a esses bonecos gigantes? Qual a importância dessa brincadeira de carnaval para tais pessoas? Qual seu sentimento ao relacionarem os bonecos ao público que os assiste, e brincam com eles?

Em Mariana, fomos até a toca do Zé Pereira da Chácara, tentar entrevistar algumas das pessoas que fazem parte do desfile. Lá encontramos jovens, à nossa espera, mas que estavam com vergonha de falar.

Wallace (15 anos), que quando pedimos para nos dar entrevista foi o primeiro a dizer “eu não quero falar nada não”, foi quem mais nos ajudou. Ele nos conta que desfila desde os três anos de idade, influenciado pelo seu avô. Seu boneco atual é a “Baiana azul”, que foi feito especialmente para ele. “É emocionante demais, na hora que a banda toca é bom, e sem banda fica sem graça”, nos conta.

Nessa roda que se formou com os garotos que dão vida aos bonecos, somos surpreendidos ao saber, que para eles desfilar com gigantes os trazem de volta à infância. Passam a ter liberdade de fazer o que querem, sem que os outros saibam quem está ali dentro. “Viram meninos de novo”.

Também tivemos a honra de conhecer uma senhora muito simpática, a Dona Maria José, que sabe melhor do que ninguém a história do Zé Pereira da Chácara, além de fazer parte do mesmo há mais de 30 anos. Em meio a toda euforia do carnaval, todos os preparativos para o desfile do bloco, que sairia em apenas dois dias, e a pressa em terminar suas vestimentas, seus últimos detalhes, ela nos brinda ao contar um pouco de sua história no Zé Pereira da Chácara:

“Desfilei muito, eu fazia meus próprios bonecos. Um deles era a Perpétua, da novela Tieta. Quando eu saía, eu era mais nova, hoje já tem 36 anos que estou aqui. Mas parei de desfilar, pois não tinha como desfilar e fazer os bonecos. Era muito gostoso sair pelas ruas por dentro dos bonecos, tinha liberdade de mexer com as pessoas, ninguém sabia quem era você. Era uma sensação de liberdade. Poder dançar, fazer medo nas pessoas. E as pessoas que nos assistiam ficavam com medo e saíam correndo.”

Dona Maria José ainda nos conta que junto aos bonecos gigantes, saíam pessoas fantasiadas, que além de desfilar, ajudavam no desfile.

Bloco do Mesclado

Bárbara Andrade e Daiane Aparecida

Em Ouro Preto, o Bloco do Mesclado, tradicional na cidade por seu desfile pelas ruas históricas, utiliza os bonecos do Zé Pereira como atração desse desfile. O Mesclado começou em 1998, com a ideia inicial de alguns estudantes, que queriam algo diferente, dentre tantos blocos “iguais”. A intenção era, com a ajuda de moradores de 11 repúblicas estudantis, montar um desfile cultural, com bateria e fantasias, pelas ruas da cidade histórica e depois comemorar o carnaval com uma confraternização.

Oficina dos Bonecos. Foto: Bárbara Andrade

Oficina dos Bonecos.Foto: Bárbara Andrade

O Bloco passou por fases diferentes, mas nunca perdeu a sua característica original, que é trazer uma bagagem caricata. Hoje possui estudantes de oito repúblicas e desde o carnaval do ano passado utiliza os bonecos do Zé Pereira nos desfiles. A parceria começou, segundo Marco Antonio Bragante Filho (Mogly), integrante do bloco, porque Rachel Germiniani (Minimim), ex-diretora do bloco, foi conhecer o centenário Clube dos Lacaios, onde são confeccionados os bonecos. Ela conversou com Hilton Pedro Sales conhecido como “Jacaré”,  que é responsável por supervisionar a confecção dos bonecos do Bloco do Zé Pereira dos Lacaios. Ele cedeu algumas cabeças que não seriam mais utilizadas para que o bloco reformasse e usasse nas festividades. As cabeças foram restauradas nesses dois anos para serem utilizadas durante o Carnaval e devolvidas à sede do Zé Pereira dos Lacaios depois do bloco. Um dos responsáveis pela restauração dessas cabeças e confecção dos demais elementos dos bonecos é o Mogly, junto com outros integrantes do bloco.

Neste ano, o Mesclado promoveu uma oficina para montagem dos bonecos e reforma das cabeças. A oficina foi aberta e gratuita e alguns integrantes do bloco tiveram a oportunidade de aprender a montá-los e pintá-los, ajudando a manter essa tradição. Mogly também conta que não é fácil confeccioná-los e que neste Carnaval, todos se dedicaram muito para a montagem deles e que até o último instante estavam trabalhando para que tudo desse certo e o resultado fosse satisfatório.

Associados aos outros elementos que compõe o arsenal cultural do Mesclado, os bonecos tornaram-se “peças chave” do desfile. O Presidente do Bloco, Eduardo Iandê Castro, considera importante a participação dos bonecos: “Os bonecos do Zé Pereira são uma das várias representações culturais que se expressam todos os anos no Bloco do Mesclado. Compondo cena com apresentações circenses, fantasias, estandartes e outras manifestações carnavalescas, os bonecos que cortam as ladeiras históricas de Ouro Preto nos fazem lembrar dos carnavais de antigamente”. A importância dos bonecos no Bloco fica nítida, ao ouvirmos os que habitam os gigantes do Carnaval durante o desfile; a energia, a alegria e as boas lembranças que os invadem.

Desfile do Mesclado 2013- Foto: Luiza Tomich Comarella

Desfile do Mesclado 2013-Foto: Luiza Tomich Comarella

Foi em 1846 que os gigantes apareceram em Ouro Preto, bem antes de chegar a Olinda. A tradição de confeccioná-los começou no Rio de Janeiro. De lá, o português José Nogueira Paredes, residente no Rio, trouxe o costume para Ouro Preto e Mariana. Somente depois disso, eles foram para Olinda, contradizendo a crença do “pioneirismo”da cidade pernambucana.