A vida como missão de um padre

por Laís Diniz

Padre-Eligio  No sul de Minas Gerais, na cidade de Lavras uma figura religiosa se destaca em meio a todos. Padre Elígio Stülp, pároco da Matriz de Sant’Ana desde de 2009, já mostrou à cidade seu dinamismo ao recuperar acervos de registros da paróquia desde o século XVII e ao agilizar obras que estavam demorando a sair do papel.

Natural do sul de Santa Catarina, onde foi ordenado aos 33 anos e, se dedicando a pregação da fé, trabalhou no “Complexo da favela do Alemão” e na África do Sul, em meio à guerra civil na Ruanda. Com uma vida religiosa tão vasta, Pe. Elígio tornou-se uma figura querida e quase típica da cidade.

Laís: Como o descobriu sua vocação para ser padre?

Padre Elígio: Isso acontece um pouco que por acaso e quando menos esperamos sentimos uma coisa diferente, como uma atração, um chamado. É uma coisa que nasce espontaneamente no coração da gente. É mais ou menos como no casamento: chega um momento em que a pessoa descobre alguém na vida dela. E na vocação que seguimos na vida consagrada é mais ou menos assim. Chega certa hora na vida que a gente sente uma atração por um estilo de vida, por que a vocação é um estilo de vida que a gente abraça. A gente vai, faz a experiência e acaba gostando. Entramos no seminário, começamos um período de formação para fazer o discernimento da vocação e descobrimos aos poucos que é esta vida que queremos. Passamos a seguir e nos tornamos religiosos.

L: O senhor trabalhou no complexo da Favela do Alemão e na África. O que desenvolveu lá, que trabalhos eram feitos com essas pessoas?

Pe.E: Eu fui muito influenciado por missionários alemães que trabalhavam na minha paróquia de origem em Santa Catarina, e por isso desenvolvi esse desejo se realizar trabalhos missionários. Eu trabalhei no Rio de Janeiro no início do meu sacerdócio. E ao mesmo tempo eu estudava na PUC-RJ, fazendo mestrado e doutorado em Bíblia. Nos finais de semana eu trabalhava na Paróquia da Penha, que é no começo do morro do Alemão. Lá tínhamos várias comunidades que desenvolviam trabalhos sociais bastante intensos e realizávamos quaisquer tipos de trabalho na comunidade da favela. Depois disso eu fui à Taubaté, no Vale do Paraíba, onde lecionei durante quase três anos.

Eu sempre tive o desejo de ser missionário, de sair do Brasil e fazer uma experiência fora. No começo, eu tinha vontade de ir às Filipinas. Mas os meus superiores estavam precisando, em 1990, de alguém que fosse à África trabalhar onde hoje é a República Democrática do Congo. E esse desejo se realizou quando fui para a África, ficando lá por 15 anos. Lá tive várias fases dessa experiência missionária. Toda experiência tem seu lado bom e seu lado menos bom, e eu conheci os dois lados. O lado bom é o povo. O povo que valoriza e que precisa muito de você, o acolhe muito bem, e todo o trabalho que se consegue fazer com esse povo. O trabalho que tínhamos lá eram escolas, escolas profissionalizantes, obras sociais. Desenvolviamos um trabalho muito grande com deficientes físicos e mentais, com crianças de rua. Eram vários tipos de trabalho, além da paróquia e do seminário, onde formávamos seminaristas de lá mesmo para darem continuidade ao trabalho. Então, o lado bom eram esses trabalhos feitos e a confiança que o povo tinha na gente e na igreja. Lá, a igreja era o único organismo credível, que o povo acreditava e confiava, pois sabia que a igreja falava e fazia.

L: E o lado ruim?

Pe.E: O lado ruim é que às vezes você está de mãos amarradas por causa das autoridades, pois esse país viveu numa ditadura militar, desde da independência em 1965, até 1997. As autoridades podavam muito a gente, não éramos livres pra falar nem fazer o que queríamos. Em 1994, eles nos pegaram, nós os ‘missionários brancos’, nos colocaram em uma salinha pequena e o governador de lá nos disse bem claramente: “Vocês padres, irmãs e freiras, não se misturem com política, isso não é problema de vocês. Fiquem nas suas igrejas, porque se não teremos que tomar providencia”. E em seguida nos fizeram assinar uma folha em branco, onde colocariam o que bem entendessem.

Vivíamos sempre em tensão e isso era um primeiro problema. Um segundo problema, era a pobreza extrema. Até porque a ditadura faz isso, ela aniquila as pessoas e tira seus meios, vai acabando com escolas, hospitais, meios de transporte. E diante disso, você é impotente. Faz o que pode, mas não pode tudo. Por vezes conseguíamos fundos na Europa para pagarmos os professores, mas tudo isso por baixo dos panos.

E um terceiro problema lá, era a questão da guerra e da violência. Em 1997, começou uma guerra que estava muito ligada à questão do genocídio. Quem já viu aquele filme Hotel Ruanda, sabe mais ou menos como é. Uma multidão estava invadindo a fronteira do Congo, pronta pra causar outro genocídio em Ruanda. E o presidente que havia assumido na Ruanda, avisou a ONU para que ela fizesse algo, pois seria causado outro genocídio. Mas a ONU não fez nada, como sempre. Na época, a Comissária Européia sobrevoou lá, voltou para a Europa e disse que não viu nada. Tinha um milhão e duzentos mil refugiados num campo só e ela disse que não viu nada. Eu acho que ela tava precisando de uns óculos muito bons. Mas nisso eles não tem interesse. Então, o presidente da Ruanda se organizou e invadiu o Congo pra pegar os rebeldes e, num primeiro momento, eles pegaram e eliminaram várias pessoas junto. Ruanda percebeu que era fácil invadir o Congo, foi atacando cada vez mais e acabou tomando o todo o país. A guerra continuou até o ano de 2003, 2004. A guerra limita muito as pessoas, e isso é um fator negativo.

Se por um lado, uma missão é uma experiência boa, positiva, bonita, ela também tem seus limites devido a esses problemas externos e isso às vezes, faz com que a gente não consiga realizar o trabalho que gostaríamos fazer.

L: E como o senhor veio parar aqui em Lavras?

Pe.E: Eu pertenço à Congregação dos Padres do Sagrado Coração de Jesus, e a Paróquia Sant’Ana, desde 1924, é dirigida pelos padres do Sagrado Coração. Os párocos de uma congregação não se limitam a uma diocese: a gente atua em várias cidades, vários estados e em muitos países também. E a troca de párocos acontece a cada cinco, seis ou sete anos. Eu estava em São Paulo quando retornei ao Brasil e o meu provincial, no caso é quem é responsável pela gente, estava precisando de um pároco aqui para Sant’Ana. Ele achou que eu teria condições de vir, me pediu e eu aceitei. Já estou há quatro anos aqui em Lavras.

L: Há pouco tempo o senhor teve um problema de saúde. Qual foi esse problema?

Pe.E: Ficar doente é uma coisa que a gente não espera, sempre achamos que tudo está bem. E eu era um desses que sempre acha que estava tudo bem, embora sempre fizesse exames regulares. Os exames estavam todos bons, pressão, colesterol. Esse problema cardíaco que aconteceu até os médicos acharam estranho, pois estava tudo normal. E quando eu fui perceber, já estava com uma obstrução de 95% na bifurcação da principal artéria. É uma experiência que não é muito agradável, pois ninguém gosta de ficar doente e pensar que tem que ficar parado por meses. E é aí que percebemos o quanto somos limitados e dependemos dos outros.

L: O que o senhor achou do tratamento que recebeu?

Pe.E: O tratamento que os médicos dão à quem é mais conhecido na cidade é diferente do tratamento que dão ao povo, a gente sente isso. Aqui em Lavras não é feito esse tipo de intervenção, e eu acabei indo fazer em São Paulo pelo fato de ter conhecidos e casa lá. Eu fui a um hospital público, fiz tudo pelo SUS e há toda essa dificuldade de conseguir a vaga, a internação e tudo mais. Fiquei numa UTI e foi uma experiência diferente, pois pude ver todos aqueles doentes, em estados bem graves. É ai que gente percebe a miséria humana, a dificuldade que isso é de fato e que a vida é muito frágil.

L: As pessoas que estão doentes têm um relacionamento com Deus ou estão desacreditadas?

Pe.E: No hospital que fiquei em São Paulo, tem um capelão que é meu amigo e há 20 anos ele visita os doentes e celebra missas nesse hospital. E aqui em Lavras fazemos o mesmo trabalho. A gente percebe que o doente está muito mais sensível, muito mais aberto a receber a visita, a receber a unção, a receber a presença do padre. Lavras é uma cidade um pouco diferente, onde o povo ainda é bastante católico e tem bastante fé, então sempre é mais fácil você visitar um doente. Em São Paulo já é mais difícil. Porém o povo já está mais acessível, mais receptível para com a religião, especialmente quando eles se encontram em uma doença um pouco mais séria, mais grave.

L: Ultimamente o mundo está muito violento. E como o senhor já lidou com tanta violência, que mensagem de conforto deixa para as pessoas?

Pe.E: Existe um desrespeito muito grande pela vida, e não só à nível de violência. Violência com armas é uma maneira, mas existem muitas outras. No Brasil há muito desrespeito para com o ser humano, muito desrespeito para com os desempregados, os pobres, para com os estudantes universitários também. Quem tem uma formação boa, é claro que não vai agir assim, mas aquele que não tem vai continuar agindo com violência. Por muitas vezes nos sentimos impotentes, sem saber o que fazer. Mas o que podemos fazer, a gente faz. Denunciamos e tudo mais. Acho que a mensagem que poderíamos deixar para as pessoas é que elas precisam lutar, não devem entregar os pontos nem desistir. E cada um deve fazer a sua parte. Várias vezes achamos que Deus deve resolver os nossos problemas, enquanto que nós somos desunidos. Quando nos unimos, quando lutamos e não entregamos os pontos, a gente consegue burlar essa situação. E qualquer tipo de violência é mudado assim. Se cada um fizer a sua parte, conseguiremos fazer muita coisa. É como a multiplicação dos pães, esse milagre pode ser repetido se houver união das diferentes classes e se as pessoas lutarem por seus direitos. A coisa pode ser diferente, pode ser melhor se houver de fato essa união, se a gente descruzar os braços e agir, as coisas podem melhorar.

A comunidade católica da cidade já está em clima de despedida, pois este deve ser o último ano em que Padre Elígio atua como pároco da matriz. Quase todas as tardes ele caminha para manter a saúde em dia. Em suas missas, seu sentido aguçado de observação é sempre notado e através deste, constrói uma história com a cidade como se já estivesse lá há muito tempo.

O padre fica à disposição das pessoas, em sua sala na secretária da Paróquia de Sant’Ana, de segunda a sexta, das 10h às 16h.