Uma vida Trans

 Por Ana Laura Comassetto, Caroline Hardt, Débora Mendes, Janaína Almeida, Moises Mota

Imagem: Rafael Roncato, cedida por Laerte Coutinho.

Foi em 2004 que Laerte Coutinho compreendeu a manifestação da transgeneridade em sua vida. Embora a ideia de viver se “montando” parecesse apenas uma fantasia impossível, foi uma decisão transformadora na vida do renomado cartunista da Folha de São Paulo.

Laerte, 62, nasceu em São Paulo, tem dois filhos, casou-se três vezes e conheceu a realidade dos trangêneros por meio de uma amiga. Para ela, o processo de adequação de gênero ocorreu, e ocorre ainda, de maneira segura e gradativa. Sem pressa ou aflição, sem deixar, como ela mesmo diz, que isso perturbe a parte do afeto.

A aceitação e apoio dos familiares é um dos pontos mais importantes no processo da transgeneridade. Para a empresária Samy França, 28, transgênera, moradora de Ouro Preto, a adequação pode ser um choque para algumas pessoas que ficaram muito tempo sem encontrá-la, mas com a sua família não. Para que isso tenha acontecido sem tanto impacto, o processo foi gradativo: “Na adolescência a gente é um gay, aí as coisas vão acontecendo. Desde criança sabemos que tem alguma coisa diferente. Nunca gostei de brincadeira de menino, achava chato. Sempre me identifiquei mais com as meninas.”

A medida em que o tempo passava e as coisas iam mudando, Samy notou que algo não se encaixava. Os cabelos começaram a crescer e detalhes mais femininos eram notados nas roupas e estilos. E assim aconteceu, sem nenhum exemplo ou inspiração, de maneira bem natural.

“Eu mesma me vejo usando o masculino em diversas ocasiões”.

Laerte

As duas não se compreendem mais no gênero masculino. Entretanto, ainda há muito a evoluir no processo de adequação de gênero. A cartunista explica que ela mesma se vê usando o masculino em diversas ocasiões, mas que não sente pressa quanto a isso, primeiro, porque viveu 60 anos enxergando pelas frestas do binômio homem ou mulher. Segundo, porque é da nossa linguagem flexionar preferencialmente para o masculino.

Samy conta que precisou de um tempo para se entender e que hoje não se vê como uma pessoa do gênero masculino, mas não se sente uma mulher completa. E, segundo ela, nem pretende se tornar. Com menos de trinta anos, a empresária afirma que já teve vontade de realizar a cirurgia de adequação de sexo, mas que atualmente isso já não é mais importante.

Quando indagadas sobre discriminações e preconceitos quanto à transgeneridade, Laerte afirma que o estranhamento é um fato e isso se dá por tantos tabus cultivados ainda pela sociedade. Para ela, a aparente aceitação da vivência trans e a tal “tolerância” que se afirma existir, tem limites claros. Ao ser questionada sobre um episódio ocorrido em 2012, ao usar o banheiro feminino de um restaurante de São Paulo, e a situação ter gerado grande repercussão na mídia, a quadrinista afirma que o caso foi rico em ensinamentos para ela, tanto por revelar um sentimento de adequação ritualizado até então, como para demonstrar a realidade de certas convenções sociais.

Já Samy acredita que o preconceito é mais escondido. A jovem afirma que, embora haja uma tradição e conservadorismo entre os moradores de Ouro Preto, onde reside, não encontra dificuldades quanto a isso. Em sua loja atende clientes jovens e também senhoras de mais de 80 anos e mesmo assim não sofre desrespeito algum. O que pode acontecer algumas vezes, segundo ela, é o preconceito dentro do universo homossexual: “Os gays acham que não precisam ser assim, pode ser gay mas não precisa ser assim [transgênero]”.

Seu maior medo, como relata, foi o de encarar o mundo. De não sentir vergonha e ser o que realmente é: “Acho que esse é o maior medo. Como será minha aceitação, eu me indagava. Rejeição da família também é uma preocupação, mas, graças a Deus, eu não tive. Minha mãe é super minha amiga.”, relata a empresária de moda.

“Acho que antes disso, eu não era totalmente feliz, tinha muitas dúvidas. Hoje em dia eu não tenho medo de encarar o mundo”.

Samy

Para ambas a transgeneridade é resultado de uma história particular de vida, as “crises” que possam existir fazem parte do movimento, diz Laerte. Samy afirma que inicialmente essa confusão existe. Se o desejo é ser um gay feminino ou uma mulher, pois, afinal, esse universo é muito amplo.

Muriel, personagem de Laerte Coutinho. Cedida pelo autor.

Transgêneros e a sociedade

A sociedade ainda cultiva muitos tabus com relação aos homossexuais em geral e mudanças de gênero. Os dados mostram que, infelizmente, o preconceito ainda se mantém. Segundo pesquisa realizada pelo Grupo Gay da Bahia (GGB), 312 gays, lésbicas e travestis brasileiros foram assassinados em 2013. Uma média de um homicídio a cada 28 horas, com estimativa de 99% motivados por homofobia.

As questões vinculadas a adequação de sexo vem, de certa forma, se modificando. Segundo informações do Ministério da Saúde, publicadas pelo site O Globo, duas operações para mudança de sexo são feitas por dia no Brasil. Entretanto, o país não realiza cirurgias de mudança do sexo feminino para o masculino.

Corroborando com as necessárias mudanças sobre o respeito às comunidades LGBTI`s acontecerá, pela primeira vez, no dia 17 de maio, o I Dia de Promoção da Cidadania LGBT da Região dos Inconfidentes. O evento tem o objetivo de tornar visível a luta em prol da garantia dos direitos civis das sexualidades manifestadas em Mariana, Ouro Preto e de toda a Região dos Inconfidentes.

Além disso, o projeto pretende também combater a homofobia, dialogando com as áreas ligadas à educação, bem como discutir políticas públicas de combate o preconceito e como disse Laerte, ainda há muito que caminhar.

Detalhe da imagem de Rafael Roncato, cedida por Laerte Coutinho.

Edição Geral: Moises Mota

Reportagem: Ana Laura Comassetto, Caroline Hardt, Débora Mendes, Janaína Almeida

Imagens: Rafael Roncato, cedida por Laerte Coutinho.