Não me calarei

Quando tudo aquilo pelo qual você luta contra acontece com você.

Por Ana Carolina Vieira, Gabriella Visciglia, Hariane Alves, Lígia Caires e Paloma Demartini

“Não acreditava que aquilo estava acontecendo comigo”, nos conta P.G. ao relembrar a tentativa de estupro que sofreu no carnaval de Campinas neste ano, interior de São Paulo. “É repugnante, você se sente impotente, fraca, suja. Mesmo sabendo que casos assim acontecem a cada minuto e que quase todas as mulheres passaram ou passarão por algum tipo de violência ao longo de sua vida, a gente nunca acha que a violência sexual vai acontecer com a gente, e na hora eu não conseguia acreditar. É muito inacreditável que alguém queira obter prazer subjugando o outro”.

P.G. é ativista do movimento Coleta das Vadias, grupo feminista que surgiu em 2011 com a proposta de responder ao aumento da violência sexual contra mulheres jovens e transexuais trabalhadoras do sexo em Campinas. “Buscamos atuar para a transformação dos valores culturais que permitem tais violências, conquistando aparatos legais e públicos que favoreçam a vida de mulheres, contribuindo para o empoderamento social e político das mulheres através de ações combativas, rompendo com o rótulo de vítimas sociais e assumindo o papel de agentes coletivos, sujeitas da ação”.

Segundo ela, ir para a rua lutar por liberdade faz parte da sua identidade. “Eu sempre senti necessidade de participar de grupos ou movimentos sociais. Quando surgiu a proposta de realizar a Marcha das Vadias em Campinas eu nem pensei duas vezes, porque se ser livre é ser vadia, somos todas vadias. Sou uma mulher que se considera livre para fazer o que bem entende, mas não é fácil lidar com as amarras sociais às quais somos submetidas”. P.G ressalta a importância das mulheres se unirem: “Não consigo me imaginar vivendo sem estar em um coletivo feminista. Mulheres são como as águas, crescem quando se encontram. A gente se ajuda, compartilha, aprende, divide. Participar de grupos de mulheres é emancipador!”.

P.G. relembra com tristeza e revolta da tentativa de estupro que sofreu na Praça do Coco (Campinas) no dia 03 de março, quando estava no Bloco Barão Geraldo com suas amigas. “Do nada, literalmente do nada, jogaram na gente gás lacrimogênio, bombas e balas de borracha. Foi um horror. Primeiro não sabíamos o que estava acontecendo, logo estávamos sendo empurrados e nossa integridade física estava sendo ameaçada pelo braço violento do Estado, que a princípio deveria nos proteger”, relembra. “Isso foi noticiado nos jornais, mas não noticiaram o momento em que senti mãos apertando meus braços, outras mãos me puxando e me vi sendo levada por três caras para um canto. Entrei em desespero, eles eram três e eu era apenas uma. Eles eram três homens acostumados a utilizar sua força, seus corpos, para conseguir o que querem”.

P.G. não conseguia se defender, ela estava presa naquela situação tenebrosa. “Eles me deram muitos tapas na cara, me bateram, me chutaram, me jogaram contra a parede. E quando não conseguiram abrir o meu short jeans, ficaram mais agressivos. Só consegui sair correndo porque caiu uma bomba próxima da gente e eles se assustaram”.

Ela foi socorrida por outras mulheres, logo depois de ter sido empurrada por um policial, ao questioná-lo sobre o porquê de uma ação tão violenta. Isso e mais um conjunto de motivos, como não saber o rosto dos agressores, fez com que ela não fosse a uma delegacia denunciar o abuso. “Quando tentei o diálogo com eles (policiais) durante a repressão ao carnaval de Barão Geraldo, fui tratada como uma coisa, um ser inanimado, empurrada ao chão. Por isso e outros fatores que não fui à delegacia”.

Além da estatística

Para o Comandante Erly de Jesus Costa, da 239º Companhia Polícia Militar de Mariana, o tipo de comportamento dos policiais envolvidos no caso de P.G. advém principalmente de um total despreparo e também da desvalorização dos mesmos em relação à profissão. “Porque não é esse tipo de treinamento que a polícia faz, não é esse tipo de orientação que a polícia presta. O atendimento tem que ser imediato independente se foi uma vontade ou não da vítima. Eu diria que esse policial agiu totalmente equivocado ao pensamento profissional”.

Já a psicóloga Margareth Diniz afirma que é necessário denunciar, em qualquer situação. “Para lidar com o trauma é preciso falar a respeito. Denunciar é um dos elementos importantes, porque se ela não faz a denúncia formal, ainda que ela tenha sido negligenciada pelos policiais, ela deveria procurar uma delegacia especializada”.

Todos os dias pelo menos uma mulher sofre algum tipo de violência. Além da vítima, a família também sofre com as consequências desses ocorridos. “Foi muito doloroso ouvir tudo aquilo que minha filha contava ao telefone. Quase não me contive, mas segurei firme para ouvi-la até o fim. Tive vontade de viajar até Campinas pra ficar ao seu lado, mas não pude”, diz a mãe de P.G.. “Pensar em sua filha sofrendo agressões físicas na rua por três covardes, homens sem cara que usurparam dela o direito de se defender, abusaram de seu corpo sem qualquer permissão e com tamanha brutalidade, é horrível”.

P.G. sabe que seu caso não será o último a acontecer. A luta pelos direitos e respeito à mulher precisa ser levado à sério. “Eu acredito na força do empoeiramento da fala, na potencialidade do rompimento das amarras de nossa voz, do rompimento de nosso secular silenciamento e, no compartilhamento das opressões para que elas talvez doam menos. Porque ao narrarmos às violências que sofremos encorajamos outras mulheres a falar sobre seus sofrimentos. Porque é preciso que adicionemos mais subjetividade nas estatísticas alarmantes de violência contra as mulheres”.

Violência no ambiente universitário

Festas em repúblicas, principalmente em cidades universitárias como Ouro Preto e Mariana, são muito comuns e fazem parte da experiência acadêmica desejada por tantos estudantes. O perigo acontece quando essas festas se tornam lugar que legitimam a violência, seja através de trotes que obrigam os calouros a beber, ou até mesmo de estupros.

A psicóloga e coordenadora do Programa Caleidoscópio da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP), Margareth Diniz, chama a atenção para as práticas violentas que vem ocorrendo em algumas repúblicas. “Em nome da tradição, que é uma questão muito complicada, tem a violação dos direitos humanos. E um dos direitos é que as mulheres não são obrigadas a transar quando não querem”, ressalta.

Diniz relata a importância de denunciar esses tipos de atos. “Quem silencia também está perpetuando a violência”. A coordenadora completa que é preciso ter um apoio psicológico para que as pessoas consigam denunciar.  “No regimento do aluno a gente procura orientar todas essas questões. A ideia do Sou Mais Juventude é um pouco essa de trazer a tona questões que são silenciadas. Estamos desenvolvendo políticas de acolhimento ao estudante, campanhas de conscientização para as repúblicas e um documentário com testemunhos de pessoas que sofreram abusos”, afirma.

Edição geral: Hariane Alves

Reportagem: Ana Carolina Vieira, Gabriella Visciglia, Lígia Caires e Paloma Demartini 

Arte: Paloma Demartini