Jogadores de RPG da região dos Inconfidentes ainda sofrem preconceito

Jogo ainda é alvo de desconfiança por moradores de Ouro Preto

Por Camila Gonçalves, Eduardo Rodrigues, Natane Generoso, Aleone Higidio e Hugo Pereira

Na região de Ouro Preto e Mariana, RPG virou tabu após crime / Imagem: Camila Gonçalves

 

Em 2001, um assassinato ocorrido em Ouro Preto ganhou os noticiários por, segundo a polícia, ter envolvimento com jogos de Role Playing Game (RPG). Após oito anos, os acusados conseguiram provar sua inocência e comprovaram que o caso não tinha ligação com os jogos, mesmo o autor do crime não tendo sido encontrado. Treze anos se passaram e jogadores de RPG da região ainda sofrem preconceito.

As investigações da Polícia, sob o comando do delegado Adauto Corrêa, indiciaram, na época, quatro suspeitos, sendo eles uma prima e três moradores da república onde as garotas estavam hospedadas. A partir de livros e pôsteres achados na casa onde os acusados estavam, suspeitou-se que o crime havia ocorrido em um ritual de magia negra realizado durante um jogo de RPG. Para sustentar a tese, a promotoria procurou reunir o depoimento de testemunhas que sabiam que os envolvidos tinham conhecimento das regras e simulações presentes no jogo.

“Foi muito difícil ser jogador naquela época” – José Aurélio Rezende

A partir da publicação desse caso, começou a ser formado um estigma ainda maior sobre o RPG e seus jogadores, antes conhecido como jogo de “Nerds sem vida social”, agora associando-os ao satanismo, isso tudo reforçado pela presença de criaturas fantásticas como vampiros, demônios e lobisomens nos jogos. “Como há um desconhecimento sobre o jogo  e por ser uma ficção que trata às vezes de temas sombrios e tem figuras nada sacras, o conservadorismo fala mais alto”, diz o funcionário público e estudante, Thiago Souza Dias, 27, que joga RPG desde os 12 anos e conta como isso repercutiu em seus hábitos de entretenimento na época do crime: “Como às vezes jogávamos em lugares públicos tipo no clube ou em praças, achamos melhor evitar”. Já o estudante José Aurélio Rezende, 28, diz que as medidas tomadas pela família foram mais drásticas: “Meus pais me proibiram de jogar por muito tempo, e sempre que eu comentava com alguém que eu jogava RPG, diziam que era coisa ruim, que era para eu largar isso, foi muito difícil ser jogador naquela época. Na verdade até hoje é”.

 

“Nunca vai pra frente, as pessoas barram a ideia. As pessoas dizem ‘Não, vocês não podem fazer isso’. Nem a UFOP te dá apoio.” – Eduardo Perovano, sobre realizar um evento de RPG em Ouro Preto.

 

A atribuição do motivo do crime ao jogo trouxe indignação aos fãs de RPG, que acharam a conexão infundada. “Eles não estavam conseguindo chegar a um resultado e usaram a coisa mais próxima. Não tem relação nenhuma com o RPG”, diz o doutorando da Universidade Federal de Ouro Preto – UFOP Eduardo Perovano, 33, jogador desde 2002. Segundo ele, existem vários eventos sobre RPG, mas quando se fala em organizar algum na cidade, nunca vai pra frente: “As pessoas barram a ideia, dizem ‘Não, vocês não podem fazer isso’. Nem a UFOP te dá apoio. ‘Vamos fazer isso na semana de inverno?’, perguntamos. ‘Não, porque RPG e Ouro Preto vai trazer um nome ruim’”. Os jogadores também argumentam que a influência causada pelo RPG não se difere em nenhum quesito daquela causada por livros, filmes, novelas e seriados, como diz o estudante da UFOP, Marco Túlio Silva, 20, citando outro caso para comparação: “No ano passado um menino assassinou a família toda, depois se matou. Culparam o jogo Assassin’s Creed por causa disso. Acho que no caso do RPG foi a mesma coisa, mas se realmente é isso, então novela e filme também induzem, tudo na nossa vida vai induzir”.

O que é o RPG?

O RPG foi criado nos Estados Unidos em 1974, por Gary Gygax e Dave Arneson, tendo Dungeons & Dragons como sua primeira plataforma. É um jogo de interpretação e sorte em que os jogadores criam personagens fictícios, organizando seus talentos, personalidade, atributos e habilidades em fichas de modelo padrão e participam de uma história narrada pelo “Mestre” ou “Narrador”, que pode ou não participar ativamente do jogo. É ele quem conduz os acontecimentos. Dados com número de faces que variam de duas a cem, ajudam a determinar as consequências dos atos executados pelos participantes.

É um jogo que depende de todos os jogadores para o andamento da narrativa, onde a colaboração é mais necessária que a competição, e esta, essencialmente, não existe. Por isso, na prática é impossível alguém “ganhar” o jogo. Quando um personagem “morre”, geralmente é feita outra ficha, e a aventura segue normalmente.

Apesar das críticas feitas ao RPG, muitos o defendem como uma importante ferramenta pedagógica. O psicólogo Pedro Vitiello aponta os benefícios do uso do RPG na educação: “Em termos pedagógicos, o RPG estimula a leitura, a matemática e a construção de lógica, além de ser um fator de socialização. Uma das coisas que percebo é que os adolescentes e as crianças se interessam bastante, a ponto de lerem mais livros, além de eventualmente criarem os próprios jogos. Um termo que se usa em trabalho com jovens é o ‘protagonismo juvenil’, ou seja, fazer o adolescente ser responsável pela sua interatividade com o mundo, e o RPG fornece meios disto ser alcançado”. Ele fala também sobre os mitos criados sobre o RPG: “A gente tem de enfrentar uma falta de informação bastante danosa aos jogos. Há uma associação tola de que RPG é algo que ‘descaminhe’ jovens, por exemplo, o que é uma bobagem. Uma das coisas que o jogo faz é separar realidade do jogo da realidade do mundo.” O Ministério da Educação recomenda o seu uso nas salas de aula e disponibiliza, em seu site, vários planos de aula com essa temática.

Sobre os crimes envolvendo RPG, o psicólogo afirma: “A argumentação de que a culpa foi dos RPGs é falsa. RPG não ‘faz a cabeça’ de ninguém. O jogo foi usado como desculpa para crimes horrendos, e parte da mídia absorveu essa informação como verdadeira”.

Outros casos envolvendo o RPG

O caso de Ouro Preto não foi o único a ser divulgado como motivado por jogos de RPG. Em 2000, duas jovens foram estupradas, torturadas e estranguladas na cidade de Teresópolis, no Rio de Janeiro. A madrasta de uma das garotas manifestou a suspeita de que um jogo pudesse estar ligado às atrocidades cometidas, pois a garota convivia com jogadores de RPG. Um jogador foi preso injustamente, e mais tarde descobriu-se que o assassino era um cigano que nunca havia tido contato com qualquer material referente ao RPG.

Já em 2005, em Guarapari – ES,  um crime que vitimou três pessoas da mesma família colocou dois jovens atrás das grades. Acusados de latrocínio qualificado e premeditado, foi dito pela polícia que uma confissão havia sido feita. Nela, eles admitiriam que a execução teria sido motivada por um jogo de RPG. O que realmente havia ocorrido, segundo supõe Marcelo Del Debbio, arquiteto e designer de jogos, em carta aberta publicada aqui, é que a confissão foi orientada pelos advogados de defesa da dupla, para tentar converter o crime para Homicídio Simples, uma vez que havia sido supostamente influenciado por fatores externos.

Editora – Natane Generoso

Repórteres – Camila Gonçalves, Eduardo Rodrigues, Aleone Higidio e Hugo Pereira