Me enterrem debaixo do balcão

A essência de dois bares ouropretanos exposta numa conversa de botequim

Por Alissa Durkes, Anna Flávia Monteiro, Daniela Félix, Larissa Vidigal, Pedro Augusto Menegheti e Priscila Fernanda

Painel no Barroco. Histórias e curiosidades. Foto: Larissa Vidigal

Dizem por aí que a hora oficial do boteco se dá quando o sol se põe. Ainda da Praça Tiradentes, na curva da esquina, se faz notável a pequena multidão na porta do estabelecimento. A elevada temperatura que perdurou durante todo o mês só deixa ainda mais certo que, no fim da tarde, é tempo de boteco.

 A menina Ouro Preto guarda no lado direito do peito o Bar Barroco, que recebe visitantes de todos os lugares; todos eles com objetivos similares: tomar uma gelada e cantar histórias. Localizado na renomada Rua Direita, o Bar das Coxinhas transita entre “ponto de encontro universitário”, “lugar pra sair com a família” e “café filosófico”.

Franceses, ingleses, estadunidenses, alemães e muitos brasileiros, quando questionados sobre suas impressões do bar, dizem sem ensaio que é um lugar de todos, sem diferenças. As paredes são um diálogo – cada canto guarda nomes de pessoas, cidades, grupos de amigos e repúblicas. Fotos de visitantes especiais e manchetes de jornais sobre a venerada coxinha emolduram as paredes. É um ambiente característico. Na imaginação, Reginaldo Rossi canta “garçom, no bar todo mundo é igual”. E é.

O balcão é morada temporária de rostos ruborizados e mãos ansiosas por copos cheios. É nesse mesmo balcão que Antônio conta como começou. Ativo desde 5 de agosto de 1982, o bar mantém fregueses antigos, paredes customizadas e uma lista de admiradores da coxinha. O bar é mais que um estabelecimento comercial – é um ponto de encontro para conhecer pessoas, compartilhar ideias e experiências; quase um patrimônio da cidade, obrigatório no roteiro de quem está de passagem.

Tu boteco es mi boteco

 “O Barroco é minha segunda casa, o lugar que mais frequentei em Ouro Preto”, disse com agrado Diogo Moraes, 22, estudante de Filosofia. Ele conheceu o local ainda criança através do pai. Quando menino, ainda não compreendia a natureza boêmia de uma Rua Direita; mas agora que mora na cidade há dois anos e meio, as pessoas ligam perguntando se ele está passando mal quando não aparece no bar. Entendeu perfeitamente o sentimento do pai e se vê em casa nesse transe de pessoas.

“A interação em um boteco termina onde começa outra.”

 Daniel Lucas, que cursa Artes Cênicas, fala que gosta do ambiente porque as pessoas se misturam, “na alegria ou na tristeza”. E completa: “Tem espaço pra todo mundo. Infelizmente vai fechar, né? – brinca sorrindo – Se fechar o Barroco, talvez até feche a rua Direita”.

Típicas paredes do Bar Barroco. Foto: Anna Flávia Monteiro

Entre um gole e um cigarro, os funcionários desmentiram boatos ao contar que o bar ficará aberto até o final deste ano. Compartilharam suspeitas de que o forno da cozinha foi o causador do incêndio ocorrido na manhã de 25 de janeiro deste ano e que foi controlado antes de causar maiores danos. Não é preciso lembrar do susto de todos ao saber da notícia e do alívio geral quando o bar reabriu poucos dias depois.

Dentre muitas conversas de botequins, Anjos surgiram. Acolhidos por “você quer uma poesia?”, um homem de barbas brancas, pele negra, óculos nos olhos e um estado de ebriez movimentado por ventos do norte, recita uma poesia quase inaudível por conta do falatório das mesas. “Meu nome é Antônio Márcio dos Anjos, mas meu nome mesmo é Antônio dos Anjos. Eu fazia poesia e escrevia nas paredes”, diz na palavra tonta de cerveja e saca da bolsa um livro de poesias e pinturas de sua autoria. Ao abrir o livro, a arte era barroca. Via-se grandiosidade no que era simples; por vezes, apenas casas coloridas. “Sou artista plástico. Aliás, sou metido a artista plástico”. Quase no meio da frase, o riso eloquente do homem na cadeira ao lado chama atenção de todos do bar. O irmão de Antônio dos Anjos se diverte com a modéstia dele.

Carlos Alberto dos Anjos, conhecido por Kartola, conta que o irmão é pintor, escritor e escultor e que já compuseram juntos. Kartola faz canção com as mãos, o ar da boca, tapas no corpo; e diz que faz da vida música e ritmo. De suas andanças contou que faria um show no tal Bar da Nida em um domingo próximo e sua arte nos aguardaria lá. A interação em um boteco termina onde começa outra.

Roda de Samba num quintal de vó

Pequenos detalhes do Bar da Nida. Foto: Priscila Fernanda

Chamados pelo batuque do samba, subimos o Morro São Sebatião e nos encontramos em um outro lugar querido pelos ouropretanos. O Bar da Nida é um daqueles lugares cuja fama é tecida pelo povo, que espalha para os quatro cantos as suas tantas peculiaridades. Localizado em bairro de labiríntico acesso, o bar só pode ser encontrado graças a informações de quem mora na região ou já esteve no local. Não há placa chamativa ou nada para nos atentar da sua localização e, quando menos esperamos, ali está, um quintal que convida à música, conversa e arte.

Ao passar pelo portão de ferro, a sensação é de ter chegado na casa da avó do interior, um lugar que esbanja vitalidade através da saúde das plantas e o modo como tudo tem um brilho próprio. Cada pedaço está decorado com muita cor – vasinhos miúdos com flores pequenas, muita chita, bonecos de pano, fotos da então Vila Rica e um pouco de literatura aqui e ali. As fichas para cervejas, drinques e petiscos são vendidas em uma das janelas, um pouco além do espaço no qual as bandas tocam; é o berço do samba no morro.

“O balcão é morada temporária de rostos ruborizados e mãos ansiosas por copos cheios.”

A energia parece tomar força a cada batida de pé. Tal energia influencia até na forma de enxergar os outros – aqueles que visitam o lugar mais parecem amigos distantes, conhecidos que estão a um copo de distância. As vozes da sempre bem-vinda Orquestra Gafieira de Ouro se misturam aos sons dos diversos instrumentos e promovem dança, contato físico genuíno e bonito de ver, quadris que bailam, mãos que seguram e que guiam. O que era um quintal de avó agora toma a forma de um terreiro fervilhando em festa. Não há exageros cerimoniais; a informalidade é tanta que cruzamos com o Seu Milionário, dono do bar, e nem nos damos conta de quem se trata.  Com apenas dez anos de história, o lugar só começou a ser mais frequentado nos últimos cinco e criou a tradição da roda de samba no primeiro domingo de cada mês. Com horário de funcionamento restrito aos fins de semana, o bar se tornou um espaço cultural aberto para a comunidade.

Prosa boa e cerveja gelada. Foto: Priscila Fernanda

Num instante qualquer entre a loucura cotidiana do Barroco e o espaço alternativo e leve do bar da Nida, é preciso alguns minutos para retomar o ar roubado pelos momentos presenciados. São lugares feitos de pessoas reais, que riem como loucos e falam alto quando a felicidade não cabe no copo de cachaça. Os conselhos de Charles Baudelaire continuam vivos nos semblantes que encontramos nesses dois lugares: “embriaga-te sem cessar; de vinho, de poesia ou de virtude – a teu gosto”. Em uma dessas, um botequeiro de longa data nos contou que se pudesse ser um objeto no bar seria uma foto na parede. “E se o bar fosse uma frase?”, questionamos. “Me enterrem debaixo do balcão”, riu. Baudelaire aprova, erguendo o copo.

Repórteres: Alissa Durkes, Daniela Félix, Larissa Vidigal

Edição de Multimídia: Priscila Fernanda

Edição Geral: Anna Flávia Monteiro e Pedro Augusto Menegheti