Os vários pontos dos contos de Ângela

por Douglas Gomes

Acervo pessoal

Em uma típica manhã chuvosa de janeiro em Ouro Preto, fui recebido por Ângela Leite Xavier, escritora, pós-graduada em História e especialista em Restauração e Conservação de Bens Culturais, natural de Pará de Minas, residente em Ouro Preto desde 1983. Contadora de histórias por paixão, Ângela é autora de três livros: “Tesouros, fantasmas e lendas de Ouro Preto” lançado em 2007, “Biografia dos Fantasmas”, infanto-juvenil, em 2010 e “Olhos de Estrela”, em 2011, obras nas quais ela reúne histórias que misturam realidade e fantasia em uma medida que nos instiga a imaginação. Em sua biblioteca-galeria, em meio a obras de arte que remetem a várias culturas e livros, muitos livros, Ângela me conta suas histórias, seus saberes, suas inspirações e paixões.

Douglas Gomes: Você é natural de Pará de Minas, mas reside em Ouro preto desde 1983. Como se deu essa vinda da sua cidade e porque escolheu se estabelecer por aqui?

Ângela Xavier: Existe uma época que você chega ao limite, juventude e adolescência, e você percebe que precisa ir buscar algo mais. Então, eu fui para Belo Horizonte. Eu queria estudar Psicologia, mas não daria para eu entrar. Estudei um pouco e passei para o vestibular de História. No fundo, a gente gosta de muita coisa, eu ainda gosto de Psicologia, continuo gostando de História, mas desse leque de coisas do nosso gosto, precisamos selecionar algumas para não se perder. Eu fiquei entre cerâmica, contação de história e escrever. Eu sempre li muito, meus pais incentivavam leitura, meu pai dava livro de presente pra gente, então eu tenho o hábito de ler desde menina. Eu vim para Ouro Preto por uma casualidade. O governo na época da ditadura militar, década de 70, queria fazer uma reforma de ensino e criou os Colégios Polivalentes que seriam um modelo para as demais escolas, um salário muito bom. Eu estava no último ano de História e mudei para o curso de curta duração Artes Industriais, pois eu vi que o curso tinha cerâmica, eletricidade, artes gráficas e eu queria dar aula de artes e não de História. Então, em uma troca feita com minha prima, eu vim para Ouro Preto, cheguei aqui na década de 70, o “The Living Theatre” tinha acabado de passar por aqui, o Festival de Inverno da UFMG acontecia aqui, e hoje não é nem sombra do que era nessa época. A vanguarda mundial da arte vinha pra cá. Exposições maravilhosas, queima de cerâmica em público. Cheguei a fazer cursos com Amilcar de Castro, Nello Nuno e outros. Personagens como Bené da Flauta e Dona Olímpia Cota, a Sinhá Olímpia estavam vivos e transitavam pelas ruas. Aqui nasceu o Uakti, por exemplo, com sua experiência musical com coisas diferentes. Existiam pelas ruas artistas pintando e desenhando, pessoas fazendo aulas de desenho com bico de pena. E veio um espanhol dar um curso de cerâmica e não tinha estrutura para que ele pudesse dar as aulas. O nosso colégio em BH tinha dois fornos e nós estávamos de férias e o curso acabou acontecendo lá. A juventude era muito politizada nessa época de ditadura, era muito buscadora do “algo mais”, na arte, na criação artística e os jovens de Ouro Preto fizeram um dia da criação onde saímos pela Praça Tiradentes com matérias primas para criação e fomos até o largo onde é a feirinha de pedra sabão onde houve várias performances, panos coloridos, exposições.

D.G.: E como a população local lidava com essa florescência artística, o que você percebia sobre isso?

A. X.: A população de Ouro Preto era, e eu acho que ainda é dividida em segmentos, que é tradicional, religiosa e que não participou de nada disso, mas os filhos participavam e isso preocupava as famílias, pois os filhos estavam infiltrados nesse meio artístico que representava para eles um desvio do caminho tradicional e mais assertivo para eles de estudar na Escola Técnica, de estudar Engenharia ou Farmácia, de seguir o caminho certo, sem tropeços. Havia o grupo de alunos politizados, que participavam desses movimentos artísticos, faziam montagens de peças de teatro, estudantes daqui, ex-alunos do The Living Theater, todos influenciados pela arte e embebidos pela cultura da cidade. Existia também um grupo de artistas que eram moradores provisórios, que ficavam em sua maioria numa casa chamada Casa dos Artistas, criada pela prefeitura. Depois de dois anos cumprindo esse período da troca com minha prima, eu fiquei balançada, não queria ser professora mas não sabia como viver de arte. Tava todo mundo colocando mochila nas costas e indo para Marrocos, para o Peru, para Califórnia, os lugares mais fascinantes na época, que atraiam os jovens. Eu tinha um dinheiro da recisão do contrato e resolvi ir para o Peru, não tinham muitas mulheres indo. Fiquei lá de fevereiro a novembro e podia ter ficado mais, mas o que havia ido fazer lá, ter um encontro comigo mesma, havia se esgotado. Essa experiência resultou em um livro que eu publiquei em 2011, chamado “Olhos de Estrela”. Dei uma romanceada contanto dessa minha estadia. Lá eu tive contato com os Incas, um povo indígena que remonta as tradições dos seus antepassados e vive com práticas milenares, numa coletividade tribal. Pra mim foi uma iniciação política, através de conhecimentos históricos que tive lá, um país livre onde coisas proibidas de serem ditas aqui. Mas voltei para o Brasil, pra minha terra inicialmente, mas depois resolvi vir para Ouro Preto. Chegando aqui, por meio de uma amiga, conheci uma atriz do Rio de Janeiro que morou na Espanha por muitos anos, chamada Domitila do Amaral que tinha uma escolinha na casa dela montada para o filho dela e filhos de conhecidos, e ela estava precisando de uma professora. Depois de uma conversa ela disse que seria mais um estimulo criativo para as crianças, um método diferente de ensino. Eu achei o máximo! Nós brincávamos durante toda manhã, contávamos várias histórias. Fiquei durante um ano e voltei para o Peru. Juntei um dinheiro, já estava com meu atual marido e nesse tempo me envolvi com restauração, fiz um trabalho e fomos. Só que nessa época a restrição para as viagens aumentaram, criaram taxas para dificultar cada vez mais, o governo da ditadura começou a fazer pressão e acabamos voltando, por achar que estávamos inseguros. Depois que retornei ao Brasil, novamente, fiquei dois anos em BH e montamos um ateliê de restauro, enquanto trabalhávamos no ateliê eu escrevia umas historinhas. Só que a vida com três crianças pequenas numa cidade grande era muito complicada. Como Ouro Preto é uma cidade artística, resolvemos nós mudar pra cá. Chegando aqui, dei aula de Artes Industriais, mas depois acabei por ir dar aula de História no Colégio Dom Pedro II. Dei aula para o Magistério, curso integrado ao segundo grau. Para variar um pouco as aulas, fazíamos teatro de bonecos, encenações de momentos sobre a história da cidade, personagens da cultura brasileira. Os alunos se envolviam e eu adorava, trabalhei por vários anos assim.

D.G.: Você é autora de três livros, com formatos completamente diferentes, que contam histórias de personagens reais e fictícios, da sua história e da história da cultura popular. Gostaria que você falasse sobre cada um deles.

“Tesouros, fantasmas e lendas de Ouro Preto” (2007) 

Acervo pessoal

A. X.: Quando eu me aposentei, eu estava cheia de informações sobre Ouro Preto, eu já tinha feito um curso para contadores de história no Festival de Inverno, com professora Gislaine Matos, por um convite de uma amiga eu fui assistir a uma apresentação de contação de histórias e me apaixonei. Cheguei até ela e pedi informações sobre como eu poderia fazer esse curso e ela me disse que dava aulas em BH. Eu e uma amiga, a Tania Arantes e ficamos durante um semestre indo e voltando para BH fazendo esse curso, uma vez por semana. No curso, aprendi que quando você vai contar histórias para crianças você precisa simular vozes, ao mesmo tempo você não pode descrever demais o personagens, você precisa deixar um espaço para que ele imagine, o próprio ouvinte complete e crie junto a história. Então comecei a pegar as histórias e lendas da cidade como o Vira-Saia, a Missa das Almas. por exemplo e a contar essas histórias dessa forma. Tentei montar um curso, mas não deu muito certo, então em 2007 resolvi escrever o livro “Tesouros, fantasmas e lendas de Ouro Preto” através de uma Lei de Incentivo a Cultura Municipal. O livro serviu como um espaço de liberdade criativa, onde eu pudesse contar as minhas histórias, do meu jeito, sem restrições de editora ou terceiros. A capa foi feita com uma tela do meu marido e os fechamentos dos capítulos com imagens das rendinhas de Dona Efigênia Estela, uma senhorinha que faz recortes em papel de forma toda rendada, eu conto até a história dela no meu livro, pois eu queria resgatar e retratar esse trabalho dela.

Ouro Preto: 300 anos de fantasmas… É fogo! E biografia dos fantasmas (2009)

Acervo pessoal

A. X.: Em 2009 eu conheci uma moça, a Márcia Paschoallin, pela internet, que estava escrevendo um livro infanto-juvenil sobre os Inconfidentes. Ela me consultava sobre a grafia original dos nomes desses personagens e eu ia buscar essas informações para ela. Ficamos amigas, ela comprou um livro meu e ficou fascinada pelos fantasmas. Então ela escreveu uma história passada nas ruínas do antigo Hotel Pilão, onde hoje é o prédio da FIEMG, em que os personagens da história da cidade discutiam entre si quem seria o responsável pelo incêndio. Então, ela me convidou para fazer a biografia dos 34 personagens da história. Achei maior barato! O livro é dela, mas com essa minha contribuição.

Olhos da Estrela Chaska ñawi (2011)

Acervo ṕessoal

A. X.: Eu já tinha várias coisas escritas, várias coisas registradas, em cartas que eu escrevia pra minha família, e que minha mãe me devolveu quando eu voltei. Quando minha filha que mora em Curitiba ficou grávida, fiquei com ela durante um mês e entrei no processo de escrita e edição. Quando voltei para Ouro Preto, eu já tinha o livro estruturado, faltando apenas acrescentar dos locais onde visitei. O Gê, um artista de Ouro Preto que eu convivi no Peru fez a capa e desenhos para eu colocar na abertura dos capítulos. Contei nesse livro histórias de amigos, mas fundindo personalidades, criando novos nomes. Eu descobri, escrevendo esse livro, que quase todo autor pega fatos reais, que ele queria passar alguma mensagem com aquilo, e conta da forma que ele quer. Pra mim, esse livro não era um relato biográfico, era um relato de uma época para um jovem que estava presente ali, um relato de uma jovem que apesar não ter enfrentamento direto, convivia com aquele período de ditadura. Ao mesmo tempo, eu queria passar a maravilha que é aqui do lado do Brasil, as pessoas vão para os Estado Unidos, para Paris, para Roma, mas ninguém sabe que aqui do lado tem essa maravilha toda, as artes, a cultura da Bolívia e do Peru, lugares os quais eu vistei e me fascinei pela cultura incaica.

D.G.: Você se diz, em seu blog ser uma “ceramista, amante do barro e de suas possibilidades incríveis”. Qual é a sua relação com a cerâmica?

A. X.: Eu sempre gostei de cerâmica. Meu pai tinha uma loja de material de construção eu pegava massinha de rejuntar janela e ficava esculpindo a massinha, depois eu descobri a argila lá na minha terra, muita argila boa, eu ia lá buscar comprava os pedaços e mandava queimar como um trabalho artístico mesmo, por paixão mesmo e jamais parei de fazer. Eu podia estar trabalhando e sempre tinha um barro enrolado em casa com uma necessidade absoluta de fazer mesmo. Uma paixão por todos os significados da cerâmica. O barro que é uma terra, que você seca no ar, queima no fogo, pinta. Então você mistura os quatro elementos e remete a origem da vida mesmo. Eu gosto da cerâmica primitiva, até aprendi técnicas de pintura, mas minha paixão é o primitivo. Uma vez eu fiz uma exposição chamada “Seres da Floresta” onde Beth Salgado fez um texto lindo sobre esta exposição. Eram umas 40 peças grandes retratando sobreviventes desse período primitivo, sendo índios e bichos da floresta. Dentre as peças havia uma urna funerária que eu fiz e coloquei ossos em gesso dentro. Na minha cidade as pessoas tinham o costume de colocar urnas funerárias com flores nas varandas, eles encontravam em uma região lá perto e usavam como ornamentação. Cheguei a expor em Belo Horizonte, em Pará de Minas e aqui em Ouro Preto na Casa dos Contos onde uma pessoa me perguntou de onde eram esses “achados arqueológicos” e isso me deixou muito emocionada.

D.G.: Em seu ofício, na sua nítida paixão de contar histórias, existe uma seleção feita de acordo com quais critérios?

A. X.: A história tem um clímax. Existem histórias que são boas pra contar e outras não. E eu comecei a identificar os públicos. Histórias de bichos e com perigos instigam as crianças. Os africanos usavam histórias pra ensinar, ao invés de repreender com o não. Uma vez eu dei um curso para professoras de um distrito que estavam tendo muitos problemas de brigas na hora do recreio, sempre tinha algum aluno machucado. Depois que nos demos o curso, ensinando como elas poderiam trabalhar as histórias para ensinar coisas, através de fantoches e contação mesmo, elas arranjaram um história fantástica de vários porcos espinhos que viviam em uma gruta e ficavam se espinhando e que resolveram que não poderiam ficar mais juntos ali naquele local, então cada um foi para um lado, mas foram atacados por feras e muitos chegaram a morrer e os que escaparam dessa aventura voltaram para a gruta e entraram um consenso de conviver sem machucar uns aos outros. As professoras trabalharam essa história com fantoches foi um sucesso. A história tem a capacidade de ensinamento mesmo.

Ao fim de quase duas horas de entrevista, agradeço a Ângela pela oportunidade, pelo prazer de ter me recebido em sua casa e pelas histórias que me contou através das quais pude viajar por várias culturas, pelas suas experiências e que por meio do seu ofício sensibiliza seus ouvintes e estimula nossa imaginação.