“Se vira, ‘cê não é quadrado”

Por Marina Geiger

Nascido em São Bernardo do Campo (SP), onde viveu até os 13 anos de idade, mudando-se para São Paulo (SP), onde viveu até os 29 e depois para sua cidade atual, São Pedro, Áureo Antônio Manoel (35), ou apenas Áureo, tem uma infinidade de histórias sobre os muitos lugares por onde passou, mas a que mais o emociona é a história de sua mãe, Dona Wilma. Segundo Áureo, ele foi tudo o que se pode ser para uma mãe: filho, amigo, irmão e pai. Sentado na cozinha de sua casa, ele se diverte e diverte a todos contando histórias sobre a mãe, os amigos e parentes. Lembra principalmente do final da vida dela – sofrendo do mal de Alzheimer, dona Wilma morou com o filho no último período de sua vida na casa onde ele mora atualmente com a mulher e a enteada. Trabalhando desde os 11 anos, morando sozinho desde os 29, Áureo teve uma vida diferente da maioria.

Marina Geiger: Gostaria de pedir um resumo da sua vida. Lugares por onde passou e o que levou de cada um deles.

Áureo Manoel: Eu nasci em São Bernardo do Campo, no hospital São Bernardo, mas morei no Jd. Silvina até os 13 anos de idade. Tive uma infância intensa e divertida, vivia na rua, se quisesse se esconder de mim, durante o dia, era só ir à minha casa. Nunca fui abastado, no entanto nunca passei fome quando criança, mas não tinha roupas ou os brinquedos que desejava. Comer uma esfiha fechada era o máximo do luxo que tinha, e só no dia do meu aniversário. Estudava em escola pública (E.E. Iolanda Noronha do Nascimento), e fiz parte da geração que passou pelo pior ciclo educacional da história, onde a qualidade e conteúdo era quase zero, mas como tinha sede de conhecimento buscava fora da escola o que ela não me fornecia, nos jornais, revistas, e livros na biblioteca municipal (Monteiro Lobato), onde nas provas, respondia até o que o professor não tinha passado em sala de aula. Não gostava, e ainda não gosto, de escrever e tinha sérios problemas com as notas de caderno, normalmente em branco, lembro até de uma vez que uma professora reclamou que não escrevia, e falei que sabia mais apenas ouvindo do que uma outra pessoa que escrevia até seus suspiros, e perguntei se ela não queria nos dar uma prova oral. E ela fez, tirei 9,8 e a que escrevia tudo tirou 3, me achei o máximo. Quando meu pai decidiu mudar para São Paulo, eu não gostei nem um pouco, pois iria sair de perto dos meus amigos, escola, ambiente e tudo mais, mas descobri depois que foi a melhor coisa que poderia me acontecer. Comecei a trabalhar com 11 anos de idade,  e desde lá não houve nada que não tivesse que lutar e suar para conseguir. Até os 13, trabalhava nas férias escolares, com meu pai, com quem comecei a ter atritos contínuos, pois confundia a autoridade de pai com a de patrão. Quando completei 14 anos, comecei a trabalhar fora como Office Boy e passei a conhecer e desfrutar do luxo e do lixo da Capital paulista. Trabalhei na mesma empresa durante 8 anos, tive 6 promoções nesse período, fui pai com 17 anos (1995), continuei estudando em escola pública até o final do ensino médio, quando iniciei o superior em 1997 em uma faculdade particular (Ciências Jurídicas), tinha bolsa de 50% na empresa até 1999, quando fui demitido, usando minha indenização para pagar, à vista, o 4º ano. No mesmo dia que fui demitido, felizmente iniciei um estágio no Tribunal Regional Federal onde fiquei por 9 meses, mas tive uma crise de tendinite nas mãos e fui dispensado, pois me trabalho exigia digitar muitos itens e eu não conseguiria. Foi nesse momento que tive o pior e mais emblemático período da minha vida, fiquei praticamente cinco anos desempregado, me sentido indigno e inútil, e mesmo tentando todos os dias, não conseguia emprego. “Vagabundo” era o termo mais ouvido, mesmo eu saindo do bairro da saúde (zona Sul de São Paulo) até o centro de São Paulo a pé e voltando de ônibus, com dinheiro contado para volta e um churrasco grego, num total de 4 reais, dado pela minha mãe. O ponto mais terrível desse tempo foi quando iniciei um processo seletivo no Banto Itaú, concorrendo com 300 por seis vagas no departamento jurídico e mesmo passando em primeiro fui dispensado no treinamento, pois tinha restrição no CPF e não poderia trabalhar num banco. Cheguei ter que trabalhar como ajudante de caminhão, ganhando R$ 20,00 reais por carga, mesmo formado e com bom currículo. Mas depois de seis meses disso, consegui meu trabalho atual, onde por conta de todo o tempo de dificuldade e humilhação, trabalho todos os dias como um faminto que vai para um prato de comida, valorizando o máximo cada conquista. Aos 29 anos, recebi uma proposta profissional, e decidi apostar em mim, e sair de São Paulo, rumo ao interior (São Pedro), para iniciar uma nova fase da vida, onde eu abriria mão do prazer e presença de tudo e todos que amava, para construir um futuro pra minha família que naquele momento era apenas minha filha. Todos os anos vivendo loucamente naquela megalópole me fez ficar “cascudo” e preparado para vivenciar meu longo período de “silêncio e solidão”. Quando estava nisso há 3 anos, minha mãe decidiu vir morar comigo, concomitantemente aceitei abrigar meu afilhado, que precisava sair de más influencias em São Bernardo do Campo, e iniciei outra fase muito difícil, pois apesar de ter companhia, continuava sozinho, porque meu afilhado era muito temperamental e ignorante e minha mãe começou a desenvolver um Alzheimer muito agressivo, que meus irmãos não acreditavam e não ajudavam, e tive que arcar com a carga financeira e emocional e ver minha mãe morrer dia a dia em minhas mãos, tendo um momento, que tive que escolher entre comer ou dar de comer para os dois que viviam comigo, mas como nunca perco nada realmente, depois dessa passagem, me tornei um homem muito melhor.

MG: Você experimentou momentos de extrema dificuldade e solidão. No que isso mudou sua maneira de ver a vida?

AM: Normalmente não estamos preparados para um evento especial em nossas vidas: a solidão. Não aquele evento temporário e eventual, mas sim viver a solidão, ruminando todos os dias, aprendendo a lidar com tudo quanto é insatisfação possível. Mas o lado bom é que aprendemos coisas inestimáveis que são impossíveis de saber enquanto não passamos por essa situação. Coisas como procurar sempre viver guiado pela razão, não deixando que as emoções sejam os únicos caminhos; o quanto as amizades verdadeiras são realmente valorosas; que os sentimentos bons e verdadeiros dentro de nós estão quase todas as respostas; que qualquer rancor deve ser superado, pois senão os efeitos de ser sozinho potencializam-se, e rancores não são importantes e no máximo, podem por alguma dúvida sobre nosso caráter; de saber que a solidão é aquele lugar legal pra visitar de vez em quando, mas não pra se ter como morada constante, sabendo que não podemos ser solitários no nosso interior, pois senão as dores serão maiores, pois não serão divididas, e as alegrias menores, pois não poderão ser aumentadas com a alegria dos outros que compartilharmos, e que pensar sozinho limita nosso campo de visão, e acompanhado por que se gosta, multiplica as dimensões alcançadas; e a principal de todas, às vezes precisamos percorrer um caminho, até então, solitário, para um dia encontrar a tão esperada recompensa de dividir o amor acumulado durante a caminhada.

MG: Sua mãe foi parte importante da sua vida. Você pode contar um pouco sobre o que você leva dela e em como ela influenciou/influencia o que você faz ou pensa?

AM: Minha mãe foi e é a pessoa mais importante que tive na minha vida, a pessoa que com amor puro, me formou como homem em todos os momentos que viveu nesse mundo, e se fosse escrever, passaria o dia todo aqui e faltaria tempo.

MG: O que te faz gostar do lugar onde vive? Por que escolheu São Pedro?

AM: Na verdade não escolhi São Pedro, foi minha vida que escolheu. No momento em que recebi a oferta de trabalho, tive que escolher em ficar na segurança da vaga que tinha, ou arriscar crescer e ficar melhor, mas no desconhecido. Escolhi a segunda opção, pois confio em mim, na minha capacidade e competência. No inicio foi muito complicado, porque tinha uma cultura paulistana, agitada e noturna, e tive que me adaptar e baixar meu ritmo, e aprender a mudar meus hábitos e horários, pois no interior, as pessoas não querem apenas ganhar dinheiro, elas vivem. E com isso, quase tudo funciona até as 19h. Mas depois que acostumei, descobri o quanto é vantajoso ter tempo pra olharmos o nascer e o por do sol, respirar ar puro, não ficar parado dentro de um carro horas e horas, ver as estrelas no firmamento, usufruir do esplendor das maravilhas da Criação, como cachoeiras, rios, serras, fontes, etc. Hoje vivo mais seguro, saudável, tranquilo e menos estressado.

A vida de Áureo agora cresceu. Casou-se no ano de 2012 e junto com ele foram morar a mulher, Renata Gabor Cecconi (37) e a enteada Letícia Cecconi Silva (12). A história de vida dele nos mostra que sempre é possível vencer se nos basearmos no que há de melhor dentro de nós e aprender a controlar o que há de ruim. Também devemos aprender a levar o melhor de todas as situações difíceis.