A saga de uma família na marcha para o oeste brasileiro

Por Di Anna Lourenço

Garra, determinação, suor e lágrimas são os ingredientes que temperaram a cultura que floresce nas cidades da chamada fronteira agrícola brasileira. Mas, não são somente tristezas e lutas os dias desse povo. Há desafios, aventuras, alegrias, festas, danças, confraternizações e, mais que tudo, esperança de um dia voltar à terra natal. Assim, alegrias e tristezas de mãos dadas vão colorindo o sonho dos que estão a construir uma nova cidade. São estas constatações que ficam após uma conversa descontraída com moradores desses municípios. Fica nítida, ainda, a sensação de que homens e mulheres avaliam de formas diferentes essa marcha para o oeste brasileiro.

É período de férias. Tempo para rever amigos e conquistar inúmeros outros. Neste fim de 2012, não foi diferente. Numa terça-feira, vou a um dos três bancos da cidade. Lá fora, sob o sol, o calor chega tranquilamente aos 40ºC, temperatura típica do Centro Oeste durante o Verão. Mas, ali dentro do banco, a temperatura está em torno de uns 27ºC, bem mais aceitável. Quem espera ver sua senha ser chamada pelo painel eletrônico parece não ter tanta pressa, pois sabe do calor que faz lá fora. Pela primeira vez, olho com olhar jornalístico aquele público que eu estava acostumada a ver em outras temporadas. Ninguém se parece com ninguém. Não há como descrever uma pessoa típica desse lugar. Sotaque, roupas, jeitos, cores e assessórios são muito diferentes, apesar destes itens serem indícios da origem de cada um. Percebo que os correntistas são uma mostra da população local, vieram de todos às regiões do país, de diversos estados e municípios.

Ao meu lado senta-se uma senhora, com aproximadamente um metro e setenta. Os cabelos bem curtos e olhos claros. Ela comenta, com sotaque típico de descendência polaca, que está ali para pagar os fornecedores, pois tem um restaurante na cidade. Aproveito a oportunidade e lhe pergunto há quanto tempo mora em Vila Rica, Mato Grosso. Pode soar estranho, mas é isso aí. Estou no município de Vila Rica em Mato Grosso. Não estou Minas Gerais. O nome da cidade já revela que foi fundada por mineiros. A emancipação foi em 1986, justamente o mesmo ano em que a família de Leci de Souza Laikovsk, 52, mudou-se de Santa Catarina para o Mato Grosso. Essa data chama a minha atenção e me faz interessar pela sua história. Combinamos então uma entrevista.

Leci Souza Laikovsk

Leci Souza Laikovsk

Numa quinta-feira, no finalzinho da tarde, como dizem os gaúchos, hora de “matear as saudades” vou ao encontro de Leci em seu restaurante. Encontro-a descansando um pouco, próxima a uma das mesas dispostas do lado de fora do restaurante. Explica que sua perna não para de doer. Sem me conhecer direito, convida-me para entrar. Seu restaurante é muito organizado e limpo. Passamos pela cozinha, onde tudo está devidamente em ordem e cheirando a limpeza. Convida-me para ir sentar lá numa varanda, após a cozinha. Em seguida, a seu convite, o esposo junta-se a nós e participa da conversa.

Seu Cassimiro Laikovsk, 56, vem alegre “prosear” conosco. Leci explica que estou fazendo um trabalho de faculdade e quero saber um pouco da história dela, das dificuldades e alegrias e do tempo em que chegaram à Vila. Ora um, ora outro, ora ambos falam-me da dificuldade que foi chegar até Vila Rica. Vieram acompanhando o pai de Cassimiro, Carlos Laikovsk que mudara com todos os filhos para este município. Carlos, assim como inúmeros outras famílias dos três estados do sul do país, realizou a chamada permuta, troca de terra, ou seja, davam a terra que eles tinham no sul em troca do dobro da quantidade no Mato Grosso e os colonizadores da região ainda ofereciam uma casa na agrovila para a proposta ficar mais irrecusável. “A troca era muito boa. O problema é que nós não sabíamos mexer com gado. Nós sabíamos apenas plantar e colher”, afirma Cassimiro ainda indignado. “Se nós tivéssemos criado gado desde o início, estaríamos ricos”, complementa Leci. Ele lembra-se que o pai mandava arrancar todo pé de capim que nascesse na roça, cena que se repetiu uns 3 anos seguidos, até seu Carlos compreender que nesta região do município lavoura não era um bom negócio.

Dando continuidade ao assunto, pergunto sobre as dificuldades enfrentadas assim que chegaram. Leci recorda-se que passaram fome. A primeira casa era barraco de lona e à noite dormiam na carroceria do trator. Para cozinhar, tinham trazido um fogão à lenha típico do Rio Grande do Sul. Mas não trouxeram a chaminé, pois a que tinham em Santa Catarina estava velha demais. Pensavam que iriam comprar outra aqui, porém não sabiam que não teriam a onde comprá-la. O jeito foi improvisar uma com as latas de óleo de cozinha, que na época era o único recurso que dispunham.

Outro problema era como obter água para o consumo daquele povo todo. Tinha de coletar a água no minadouro, onde era pura areia. Pegava os baldes num dia e colocava para descansar, para a areia descer, e só no outro dia podiam coar para beber. Suas lembranças são de muito trabalho, pois sozinha tinha que lavar e cozinhar para todos os cunhados e peões, em torno de oito pessoas. Não se recorda de eles a ajudarem, pelo contrário estavam sempre cobrando e xingando. Nunca o que fazia era suficiente para eles. “Eu chorava tanto”, recorda-se Leci.

O início foi muito difícil para todos os que vieram trabalhar com a terra. Cassimiro conta que juntamente com o pai e seus irmãos iam derrubando a mata, cada ano um pouco. Após a derrubada colocavam fogo, pois era a única forma de limpar o roçado para poder plantar milho ou arroz. Porém, tinha lugares da terra que as plantas não cresciam direito, amarelavam, pois era região que pertencia aos índios. Sabiam disso pelos utensílios encontrados ali, como panelas de barro, e, também, pela cor e dureza do solo.

Para ajudar os homens da família do sogro, Leci preparava sempre o almoço e ia levar para eles lá na roça. Num destes dias, foi rodeada por uma manada de porcos selvagens. “Um dia fui levar a comida e aqueles porcões vieram. Eu subi numa árvore e fiquei bem quietinha. Mas eles sentiram o meu cheiro. E foram formando aquela roda assim em volta. Eram uns 80. Batiam os dentes, tchra..tchra…tchra”, explica ela como era o barulho que ouvia. E complementa “eles olhavam para mim e eu falando aí meu Deus. E eu pensando, não vou mais descer daqui, porque estes porcos não saem de perto. Aí eu dei uns gritos bem alto: Ah porcada! Então, eles foram embora. Eu desci com muito medo, pois aqueles porcos deixavam uma catinga no ar.”

Fiquei muito surpresa com esta parte da história enquanto Leci e Cassimiro riam da recordação. Acabei rindo, também, por me imaginar na mesma situação. Mas quando eu achava que essa seria a única surpresa desagradável que poderia por medo numa mulher naquele tempo, Leci cita outro animal que aí sim, era de arrepiar-se: cobra sucuri. “E sucuri? Nós matamos uma.” Leci olha para o esposo e pergunta para confirmar, “era sete metros e pouco, Cassimiro?” E ele confirma sete metros e meio, balançando positivamente a cabeça. “Eu vi o cavalo correr com o olhar assim estranho. Falei meu Deus o que tem ali? Ai eu fui lá ver, uma baita de uma cobra” diz Leci. Cassimiro, complementando o episódio, diz que dentro da barriga da cobra havia 62 ovos e em cada um tinha cobrinha. Leci retoma a conversa e diz que “falavam para mim que uma cobra ia comer minha menina, mas eu respondia: aqui não tem cobra não. Mas, depois que eu vi essa não deixei mais ela sair fora de casa ou brincar sozinha.” Neste momento, não resisto. Pergunto como conseguiram matar uma serpente tão grande assim, pois deveria ser impossível matar com enxada. A resposta foi bem óbvia para quem mora no interior, nos sítios. Utilizaram uma espingarda. “Ela estava enrolada. Só com a cabeça de fora. De vez em quando colocava a língua prá fora. Aquele animal enorme, ninguém chega perto não”, Leci conclui em gargalhadas.

Senhor Cassimiro, bem mais a vontade, fala que gostaria de fazer uma novela sobre a saga dos desbravadores do Mato Grosso. Leci, sorridente, diz que seria interessante uma novela sobre o que passaram: dormir no mato e todas as dificuldades. Enquanto ela lembra, comentando de forma alegre e divertida, todas as suas obrigações de dona de casa, sem recursos ou tecnologias, ele, igualmente feliz, conta que a diversão era dançar no barro, fazer churrasco, beber vinho com os vizinhos, ouvir música e dançar. Para Leci, o sofrimento daquele tempo foi grande de mais, maior que as alegrias, e aproveita para falar que também houve momentos de desespero. “Cassimiro foi buscar o moto-serra que tinha deixado no mato, mas não conseguia encontrar o caminho de volta, pois já era noite. O sogro foi procurá-lo, porém ele se afastava mais de casa.” Seu Cassimiro, nesta hora, fala em tom de brincadeira “acho que o bicho estava me levando”. De uma hora para outro os sorrisos cessam. Um momento de tristeza pairou no ar. Cassimiro fintando o chão fala que a vida ali realmente não foi fácil. Que um de seus irmãos acabou matando-se não por querer, mas acidentalmente. Com um olhar mais triste fala da morte do irmão. “Meu irmão se matou. Por volta de umas cinco horas, num dia 2 de fevereiro, ele foi ver a roça que os porcos estavam comendo, pegou uma espingarda e dependurou no ombro assim de lado. Saiu de casa após uma chuva. E não voltou mais. Campeamos por todo lado. Achamos ele no meio do arrozal em baixo de uma árvore. Ele tentou subir em uma árvore derrubada no chão e sua botina resvalou. A arma não estava travada e disparou um tiro em sua barriga, atravessou tudo, assim para cima” fala mostrando com a mão a trajetória da bala que entrou na virilha em direção ao ombro. Dona Leci complementa, “só o encontraram por conta de um corvo que estava na galha de um pau, próximo ao local”.

Diante de tantas dificuldades quero saber se não sentiram vontade de voltar para sua terra natal. Então relatam que são de Faxinal dos Guedes, Santa Catarina. Como Leci não conseguia se adaptar na Vila, decidiram voltar. No entanto, não para Faxinal e sim para outro município do sul do país. Foram para São Matheus no Paraná, pois um cunhado fizera uma boa proposta. Sr. Cassimiro, em tempo, corrige, dando a precisão correta para onde foram. “Nem São Matheus não foi, foi para Rio Claro, um distrito do município de Mallet.” Venderam tudo e foram trabalhar no erval. Lá fizeram curso para saber plantar, cuidar e coletar as folhas. Além de cuidar do erval, trabalhava na ervateira. Tinham a tarefa de torrar e embalar a erva. Preparavam erva para chimarrão e inclusive em sache para chá. O relato de Cassimiro passa a ser de sofrimento e tristeza, agora se parece com o de sua esposa sobre a vida que levaram quando vieram para Vila Rica. Ele pelo menos fala que não gostava da vida no Paraná. Para ele, enfrentar o frio e os mosquitos do erval era muito sofrimento. “Para nos proteger dos mosquitos, tínhamos de colocar luvas, cobrir toda a cabeça e deixar de fora somente os olhos. Era mosquito demais, Deus o livre”, fala sorridente. Para ele, a pior hora era quando tinha que fazer as necessidades físicas ali mesmo no erval. Uma pessoa tinha que ficar tocando os mosquitos.

Pergunto onde foi mais sofrida a vida. Leci diz que sofreu muito quando chegou à Vila Rica. Moravam em baixo da lona e até passaram fome. Cassimiro discorda, não suportava o frio e o ritmo do serviço no erval no Paraná. Ele colocando as mãos sobre os ombros, como se a memória lhe trouxesse o frio que sentia no dia da viagem, conta que saíram do Mato Grosso para o Paraná em agosto e ao chegar lá fazia 1ºC a baixo de zero. Dona Leci intervém, rindo do esposo, “eu achei foi bom. Ele aí nem conseguia falar, todo se tremendo. E eu toda de boa. Gostando.” Acabaram voltando para o Mato Grosso, depois de um ano e meio. As promessas que haviam recebido não foram exatamente iguais. Retornaram e decidiram abrir um restaurante. Mas ao todo foram vinte anos de roça e sofrimento.

Leci Laikovsk, pensando na aposentadoria, gostaria de voltar para a roça, pois a rotina do restaurante é muito puxada. Ela sente muita dor nas pernas e não consegue tratamento adequado. Mas, Cassimiro não quer nem pensar nesta possibilidade, pois sofreu muito desde quando era criança na lida diária da roça. Sabe que não consegue tirar leite, pois uma de suas mãos quebrou e sarou fora do lugar. Para corrigir o defeito precisava quebrá-la novamente e ir para Brasília e isso não passa pela sua cabeça.

Família Laikovsk - Catiano, Cauane, Elisângela, Leci e Cassimiro

Catiano, Cauane, Elisângela, Leci e Cassimiro – Família Kaikovsk

Chega a hora de preparar o jantar. Sinto que está na hora de ir embora. Antes da despedida chega um de seus filhos, a nora e a netinha. Então compreendo que esta família agora é bem brasileira. Seus cinco filhos nasceram no Paraná, viveram no Mato Grosso e casaram com pessoas de outros estados. Hoje este casal catarinense tem noras tocantinenses, genros goianos, mineiros e mato-grossenses. E os netinhos são vilarriquenses. Tenho que concordar com senhor Cassimiro é uma “mistura fina”. Agradeço a cordialidade e confiança em falarem de suas vidas e abrirem sua casa para mim. E vou embora com a certeza de ter aprendido muito e conquistado mais alguns amigos.

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Estudante de Comunicação Social - Jornalismo