A vida das “comadres” nas repúblicas estudantis de Ouro Preto

 

Por Sidharta Monteiro e Fabiano Oliveira

QUADRINHO LÚ

Homenagem da República à comadre Lucrécia . Foto: República Aquarius

As repúblicas de Ouro Preto datam de 1958, ano em que a Escola de Minas cedeu um imóvel para a república Castelo dos Nobres. Desde essa época, elas cumprem o papel de conservar o patrimônio histórico e abrigar os estudantes durante sua passagem pela Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP).

Entre as possibilidades de moradia para estudantes na cidade, estão as repúblicas federais (cujos imóveis pertencem à universidade) e as repúblicas particulares (imóveis alugados pelos estudantes que juntos dividem os custos de manutenção da casa).

O sistema republicano de Ouro Preto é único no Brasil e conta com 69 moradias federais em que os estudantes possuem um sistema de auto-gestão e mais de 200 residências estudantis particulares.

Da chamada “tradição republicana”, fazem parte moradores e ex moradores, que ao longo dos anos, sempre retornam à cidade para rever os amigos e visitar a casa em que viveram. Há ainda as comadres, maneira como são conhecidas as domésticas que trabalham nessas casas. Mais do que empregadas, as comadres são consideradas pelos moradores como mães.

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Lucrécia na varanda da República Aquarius, exibindo um agasalho cedido pelos moradores. Foto: Sidharta Monteiro.

Lucrécia Melissa de Oliveira, 46, é natural de Ouro Preto e é a comadre da República Aquarius. Exerce a profissão de doméstica há 20 anos e já passou por restaurantes e casas de família. Desempregada, ela substituiu a tia, que após um acidente ficou incapacitada de trabalhar por 6 meses. A tia nunca voltou e Lucrécia completou 11 anos de trabalho na república no dia 10 de março.

Quais as principais diferenças entre trabalhar em uma casa de família e em uma república estudantil?

LMO: Não tem encheção de saco das patroas. Em casa de família tem roupa pra lavar e passar, tem criança e ainda tem a patroa. Na república, a gente tem uma convivência, tem liberdade. Como tem muita gente, a gente sempre tem muitas opiniões sobre o melhor jeito de fazer as coisas. Tenho vários patrões, recebo valor integral, sem desconto de vale transporte e de INSS, tudo direitinho. Aqui não sou empregada, sou comadre, eles têm consideração comigo. Comadre é uma coisa, e empregada é outra completamente diferente.

Você gosta de trabalhar para os estudantes?

LMO: Eu adoro trabalhar aqui, ninguém me incomoda. Se depender de trabalhar novamente em casa de família, procuro outro trabalho. Sofri muito trabalhando em algumas casas. Trabalhei em seis e o trabalho é sempre muito grande e não dão valor. Até fome já passei em algumas casas. Você trabalha mais de 8 horas por dia e não tem recompensa. Tem amigas minhas que deram mais sorte, adoram as famílias, mas eu nunca dei essa sorte.

Como é a relação com os estudantes e com os ex-moradores?

LMO: Ótima. É uma convivência muito boa. Eles me tratam muito bem e têm muita consideração. Tudo que eu preciso, eles tentam ajudar, de uma forma ou de outra. A gente pega uma amizade tão boa que quando eles se formam, a gente sente muita falta, não tenho nada a reclamar. Com os ex-alunos também é ótimo. A gente sempre espera pra ver quem vai embora e fica com saudade, mas sempre tem aqueles que ficam em Ouro Preto, continuam estudando, fazendo pós-graduação ou trabalhando.

Quais as vantagens e desvantagens em trabalhar para estudantes?

LMO: A vantagem é que como eles estão estudando, sempre ajudam bastante gente que tem filho como eu. A gente aprende muita coisa com eles no dia-a-dia também porque tão sempre estudando. Acho que não tem desvantagens, talvez só a sujeira das festas (risos), mas isso não é uma desvantagem não. Não tenho do que reclamar. Ajudaram muito meu filho e hoje em dia ele estuda no Cefet. Tenho muito a agradecer à república.

Que dificuldades você encontrou no trabalho?

LMO: A maior dificuldade é agradar a todos, porque é muita gente. Cada um gosta de café de um jeito, da limpeza de um jeito. O trabalho é bastante porque a casa é muito grande, mas eu divido, faço cada dia um pouco, aí não tem problema. São 10 banheiros pra limpar, copa, cozinha, sala, 8 corredores e várias escadas. Agradeço a um ex-aluno que trocou a cera em pasta por cera liquida (risos), ele não gostava de ser acordado com a enceradeira batendo na porta do quarto, então resolveu facilitar o serviço.

A fama dos estudantes de Ouro Preto se justifica? Acha que bebem demais e estudam de menos?

LMO: O pessoal aumenta muito. Não é tudo isso que dizem. Uns bebem mais que outros, mas não é o que dizem por ai. A gente que está dentro sabe como é de verdade. Se fosse como dizem, a gente nem podia deixar os nossos filhos entrarem e o meu filho não sai daqui, foi criado aqui desde os 5 anos.

Você concorda com o sistema republicano (trotes e batalha de vaga)?

LMO: Concordo sim. Quando chega um novato, ele tem que conhecer a casa e a gente tem que conhecer ele também. Não dá pra colocar qualquer um morando na nossa casa. Quanto ao trote, eu concordo com alguns. Não concordo com trotes com álcool, com bebida em excesso, porque tem gente que não bebe. Eu gostava de alguns, as fantasias, as placas (risos) identificavam as pessoas. A maneira como eles vivem é muito boa, aprendem muita coisa.

Caio Silveira fala sobre sua relação com a comadre 

Para Caio Silveira, 26, estudante do curso de Engenharia de Minas e morador da República Aquarius, Lucrécia não é uma empregada. O estudante vive na república há 2 anos e somente não se encontra com Lucrécia aos domingos, dia em que ela não trabalha. Para ele, a “Lú” é uma grande mãe para todos os moradores.

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Lucrécia e Caio na República Aquarius. Foto: Sidharta Monteiro

Quantas comadres passaram pela residência?

CS: Desde que cheguei na Republica Aquarius, só esteve e ainda está aqui a Lucrécia. Mas em nossa história, temos registros de mais duas que trabalharam aqui. Uma se chama Jandira e foi “comadre” aqui por mais de uma década. A outra infelizmente não sei o nome.

A relação com a Lucrécia se dá num nível patrão/empregado ou há algo mais?

CS: A relação é algo totalmente diferente de qualquer coisa que já vi. Antes de vir para a República, eu tinha outra ideia de relacionamento entre doméstica e patrão. Na minha casa, por muito tempo, tivemos uma empregada doméstica. A relação era boa, mas não se compara com o que temos aqui. Em primeiro lugar, chamamos a Lucrécia de Lú e não intitulamos como empregada e sim como “Comadre”. Ela é para vários a nossa “mãezona”, que se preocupa conosco. A grande maioria dos moradores e dos ex-moradores tem uma relação muito maior com ela do que teria com alguma empregada doméstica em outro caso.

Aqui a Lú é tão nossa quanto a Aquarius é dela. Em reconhecimento a este carinho, no ano de 2012 fizemos uma homenagem a ela, colocando sua foto num quadrinho e agora ele pertence à história da republica. Para os moradores de republica e todo mundo que conhece nossa vida, ser homenageado em alguma casa de estudantes de Ouro Preto é um sinal de grande consideração à pessoa. Todos os anos, no natal, compramos algum presente para ela. No ano de 2011, demos uma máquina de lavar nova. Em 2012, foi uma reforma do banheiro.

Em outras repúblicas, temos alguns exemplos. Na República Sinagoga, a comadre vivia literalmente em um barraco. A república ajudou a construir e financiar uma casa própria para a “comadre” que trabalha lá há mais de uma década também. Na República Senzala, a “comadre” trabalhou por volta de 30 anos aproximadamente, e após se aposentar, deu lugar a uma de suas filhas que agora está trabalhando lá. De um modo geral, as Repúblicas sempre acabam criando um laço muito forte e os moradores sempre estão engajados a ajudar as “comadres” em tudo que estiver ao alcance e que elas precisarem.

Quais as diferenças de se trabalhar numa casa de estudantes?

CS: Várias. Você não tem na verdade um patrão, mas às vezes tem vários. É difícil agradar muita gente, ainda mais no caso da Aquarius, onde moramos atualmente em 25 pessoas. Mas o estudante não é tão exigente e na maioria dos casos, se preocupa mais com o bom relacionamento do que com a cobrança. Claro que o profissionalismo deve existir, mas o dia a dia é muito mais tranquilo do que numa residência comum.

Como a Lucrécia vê o sistema republicano?

CS: Ela vê tudo que passamos, as dificuldades para se formar, os desafios cotidianos para tentar ser um bom profissional no futuro, nossos erros, decepções, sucessos. E ela sabe que aqui passam pessoas de todo tipo, que chegam sem saber quase nada sobre como viver fora da casa dos pais, mas aprendem como viver coletivamente, como dividir tanta coisa ao longo da graduação. Se alguém chega aqui e sai com uma bagagem de vida melhor, com experiência, aprendizado, anos inesquecíveis e amizades que serão para a vida toda, tenho certeza que ela, assim como todas, é totalmente favorável ao nosso estilo de vida.

As comadres e as repúblicas particulares

Nas repúblicas particulares de Ouro Preto, as coisas não são diferentes. Nelas, a relação das comadres com os estudantes funciona de forma semelhante. Elma Almeida Machado (32), a “Elminha”, comadre da República Taranóia, conta um pouco sobre seu trabalho na casa. Embora trabalhe na casa há apenas 3 anos, já exerce a função doméstica há 22, tendo começado aos 9 anos como babá.

elminhaElminha e a bandeira da República Taranóia. Foto: Fabiano Oliveira

O que levou você a trabalhar em uma residência estudantil?

EAM: Decidi trabalhar em República Estudantil por causa da minha filha pequena, pelo fato que não teria o mesmo tempo disponível para o bebê caso continuasse como doméstica comum. Em meus trabalhos anteriores, em hotéis e restaurantes, os horários não coincidiam.

Quais as principais diferenças entre trabalhar em uma casa de família e em uma república estudantil?

EAM: A “pegação no pé” e falta de colaboração, que acontecem em uma casa familiar. Em uma República, a relação é mais franca. Conto sempre com a compreensão dos meninos.

Você gosta de trabalhar para os estudantes?

EAM: Gosto, quando se dá bem com todos os moradores, porque tem também o problema de não se darem. Numa república feminina, por exemplo, a convivência é bem mais conflituosa.

Como é a relação com os estudantes e com os ex-moradores?

EAM: A relação é de amizade. Em uma casa comum, é quase impossível ter uma conversa amigável, que saia da relação profissional. É tudo muito rigoroso, diferente da república, onde é criado um laço além do profissional.

Quais as vantagens e desvantagens em trabalhar para estudantes?

EAM: O horário flexível, salário por hora bem superior ao que ganharia em uma casa comum. O tratamento é mais íntimo e não se é tratada como simples faxineira. Não tem desvantagens.

Que dificuldades você encontrou no trabalho?

EAM: Em determinadas repúblicas, os estudantes dormem até tarde e dificultam seu trabalho. Mas geralmente não são causados empecilhos. Por isso, os estudantes sabem que estão errados. Fora isso, não há problemas maiores.

A fama dos estudantes de Ouro Preto se justifica? Você acha que bebem demais e estudam de menos?

EAM: Não. Quanto à bebedeira, concordo. Mas quando se fala em depravação, eu discordo. Os republicanos em geral também são bem disciplinados e responsáveis. Isso depende mais da pessoa.

Você concorda com o sistema republicano (trotes e batalha de vaga)?

EAM: Depende do trote. Em alguns casos, são demasiadamente “pesados” e quanto aos trotes que são considerados como trabalho para a República, eu concordo. É uma etapa importante na inclusão do “bixo” ao sistema republicano.

Pedro Dummont fala sobre sua relação com a Elminha

Pedro Dumont (19), convive com Elminha há 8 meses, tempo em que mora na república. Segundo o estudante de Economia, apesar do pouco tempo, os laços de amizade já foram criados.

Como é a relação com a comadre? A relação se dá num nível patrão/empregado ou há algo mais?

PD: A relação se dá num nível mais íntimo. A comadre é como se fosse uma mãe, uma amiga que faz muita falta quando se sai de casa. De vez em quando, ainda ataca de médica e conselheira, consegue tomar conta de todo mundo.

Qual a diferença ou diferenças de se trabalhar numa casa de estudantes?

PD: A liberdade que se tem, e o espaço que se ocupa quase como de alguém que mora com a gente. Ou talvez, em certos casos até mais: as comadres ganham uma homenagem na República. Essa é a principal diferença.

Como a Elminha vê o sistema republicano?

PD: Ela já se acostumou com o sistema republicano. Não vê empecilhos e considera o sistema efetivo para a integração do calouro. Já está habituada aos costumes e à casa.