Celular – a câmera do jornalista moderno?

Como o fotojornalismo se relaciona com as novas tecnologias

Por Anna Antoun, Katiusca Demetino, Marina Morgan da Costa e Pamela Moraes.

Os contrapontos das novas tecnologias utilizadas nas fotos jornalísticas e as discussões que giram em torno desse processo. Algumas das questões mais discutidas entre os profissionais e estudiosos da área são a perda de qualidade e alterações que podem “desmontar” a realidade.

O fotojornalismo é uma prática jornalística utilizada para documentar e retratar uma realidade e, obviamente, o fotógrafo tem em mãos o poder de retratá-la a partir de seu ponto de vista, utilizando, por exemplo, a luz, o foco, a distância e o enquadramento da maneira que mais lhe interesse.

A credibilidade jornalística muitas vezes depende de um registro, de algo que prove o fato noticiado e, por isso, o fotojornalista enfrenta um dilema: usar ou não usar e como o usar os recursos tecnológicos que são oferecidos?

O fotojornalismo nos dispositivos móveis

Em 2011, uma foto tirada por Damon Winter no Afeganistão e premiada no concurso de fotojornalismo “Pictures of The Year Internacional” levou blogueiros, fotógrafos e especialistas a discutirem o uso desses meios tecnológicos, seus prós e contras. O que gerou a polêmica foi o dispositivo utilizado para fotografar: um iPhone. E, ainda mais, foi usado um aplicativo chamado Hipstamatic para alterar as cores da foto.

Damon Winter, Afeganistão, 2011.

Foto: Damon Winter, Afeganistão, 2011.

O fotógrafo e blogueiro André Americo, 27, de São Paulo, se considera um usuário assíduo das tecnologias, usa o aplicativo Instagram para ilustrar ao público suas pautas mas não desconsidera o uso tradicional das câmeras profissionais.  “Ainda estamos engatinhando nesse sentido, acredito que as novas tecnologias podem ser muito melhor utilizadas. Basicamente, a única coisa que o fotojornalismo aproveita é a internet móvel para enviar as fotos diretas da pauta”. Para ele é necessário aproveitar melhor a tecnologia móvel, que ainda é muito pouco utilizada no Brasil: “Já sai pra pauta só com um celular, consegui fazer as fotos da edição sem o menor problema, uma delas até foi capa do jornal.

André faz parte de um grupo de fotojornalistas chamado UAIphone. O UAIphone  é um coletivo internacional de fotógrafos que se dedicam a promover o seu trabalho e que utilizam fotografia pelo dispositivo móvel iPhone, acreditando ser um meio importante para a evolução da fotografia. Com uma visão em comum e paixão pela fotografia, os fotógrafos captam opiniões sobre o mundo e compartilham suas histórias.

Foto: UAIphone

André acredita que algumas modificações, como adição e retirada de elementos da imagem é antiético, mas que aumentar o contraste ou alterar a saturação, são alterações que não modificam os elementos principais da fotografia: “O que se faz hoje no Photoshop já se fazia antes no laboratório”. A fotografia é uma representação da realidade, mas não traduz exatamente o fato. Ela é passível de interpretação e carrega uma parcialidade, pois o olhar do fotógrafo se transforma no olhar da cena, do momento.  André diz não ser contra a utilização de filtros, já que eles podem servir de suporte para passar uma mensagem ao leitor, como também ajudar na interpretação das fotos. Para ele, as novas tecnologias vêm para facilitar e aumentar as possibilidades de criação: “A fotografia nunca teve tanto espaço em galerias e museus, acredito que a tendência é essa, cada vez mais as pessoas estão vendo a fotografia como uma peça de arte”.

Foto: André Americo.

Foto: André Americo.

O fotógrafo não é alguém que sabe como utilizar o equipamento e as tecnologias, isso é uma tarefa que uma pessoa “comum” pode aprender. Com a democratização da informação e com a tecnologia móvel/digital cada vez mais abrangente, qualquer pessoa é capaz de capturar a imagem de um fato. O diferencial do profissional de fotografia é a capacidade de interpretação dos acontecimentos e a capacidade de formar um discurso coerente, criativo e bem feito. “O fotógrafo terá de oferecer algo mais do que a fotografia pura e simples, é necessário vender uma visão, um discurso”. Ou seja, “o fotógrafo, acima de tudo tem que ter algo a dizer.”

Tárlis Schneider, 30, é editor e fotojornalista na Agência Acurácia Fotojornalismo, em Porto Alegre/RS. Para ele, a qualidade fotográfica em dispositivos  como smartphones e tablets vêm aumentando consideravelmente e trazem consigo a possibilidade de uma rápida disseminação do conteúdo por meio das conexões diretas com a internet, em especial, com as redes sociais. Ele completa: “as tecnologias móveis são importantes no primeiro contato do fotojornalista na cobertura em que ele se encontra. Ao chegar no local em que ocorre o fato, esse profissional pode realizar o primeiro registro de maneira rápida e qualificada, transmitindo instantaneamente. Depois desse reporte, pode dar ênfase na cobertura tradicional, trabalhando com equipamentos mais robustos (DSLRs) e produzir em uma linguagem fotográfica mais aprimorada, por vezes autoral”. Tárlis, defende que uso dessa tecnologia deve ser feito com precaução pois ainda existem limitações técnicas na sua utilização.

Tarlis Schneider, Porto Alegre, 2013. /Acuracia Fotojornalismo Tarlis Schneider.

Foto: Tárlis Schneider, Porto Alegre, 2013.

Na visão de Tárlis Schneider, não há motivos para não se utilizar a fotografia tirada com dispositivos móveis se ela cumpre sua tarefa de informar o fato com qualidade na linguagem e na plástica fotográfica. Ele ainda ressalta que caso a fotografia seja o único registro de um flagrante de extrema importância, a foto se sobrepõe aos quesitos de qualidade e não só pode como deve ser utilizada como registro fotojornalístico. A Acurácia tem projetos para receber imagens desse tipo. De acordo com ele é “algo dinâmico, colaborativo e cidadão, mas que renda financeiramente para o autor da foto”. A agência procura harmonizar a tecnologia móvel e sua colocação no mercado editorial.

Quais os limites nas edições fotográficas?

O fotógrafo e colunista da revista Photomagazine, Alexandre Velasco Villegas, 37, de São Paulo, também foi um dos que abordaram em seu blog, a polêmica premiação de fotojornalismo em 2011.  Alexandre, em entrevista, afirma: “a pouca veracidade das cores e contrastes alterados por filtros nos faz questionar a veracidade da foto em si – e lá se vai a sensação de credibilidade”. Para ele o jornalismo é inteiramente baseado em credibilidade e não em relação ao processo, mas ao jornalista que tem a responsabilidade de se manter neutro e crível. Ele diz que toda imagem fotográfica é parte documento, parte abstração, e não pode ser 100% uma coisa ou outra.

A responsabilidade pela credibilidade e pelo poder de “prova” presente na foto jornalística é basicamente do agente da ação, do fotógrafo que, diante do objeto, escolhe a melhor maneira para retratá-lo. Alex fala que alguns avanços são realmente úteis, como o uso de lentes mais claras e precisas, softwares de processamento mais poderosos, computadores mais rápidos, câmeras mais sensíveis à luz. Ele relata que não adotou a fotografia com celulares, pois a produção dele exige mais qualidade e controle de imagem do que um celular pode oferecer.

Ele não desaprova alterações na imagem, mas reconhece que elas podem comprometer a veracidade daquilo que foi “documentado” e é um desafio tanto para o leitor quanto para o profissional avaliar os limites dessas alterações.

Alex Villegas.

Foto: Alex Villegas.

Apesar de não trabalhar como fotojornalista, Alex crê que os desafios dessa profissão não tem relação com câmeras ou tecnologias, mas com com dois pontos em especial: estar no local do acontecimento e ter acesso ao material de estudo do que será documentado. Para ele, apesar de muitas vezes o trabalho do fotojornalista parecer simples e “fácil” de ser feito, é na verdade extremamente trabalhoso e o mérito deve ser todo do jornalista. Outro desafio é ter uma visão relevante da coisa.

O diretor audiovisual Christian Caselli, 40 do Rio de Janeiro, já esclarece de antemão: “sou muito crítico ao jornalismo em geral”. Formando em Jornalismo, conquistou destaque no audiovisual alternativo e realiza diversas obras de baixo orçamento.  Seus filmes podem ser encontrados no Youtube e no site Curta o Curta. É também curador e responsável pela parte videográfica da Mostra do Filme Livre que está na 12ª edição. Além disso o diretor realiza, pelo 4º ano consecutivo, a exposição foto-celular, que contém mais de 500 fotos realizadas por ele ao longo dos anos e em suas viagens. Seu curta mais conhecido já passa de 600 mil visualizações no Youtube, chama-se O Paradoxo da espera do ônibus.

Christian se considera um fruto da tecnologia digital: “Vou tecer loas quando a película morrer de vez, os puristas odeiam quando eu falo isso…”, brinca. “Também sou um adepto da tecnologia portátil. Prova disso é a minha exposição foto-celular que exibo desde 2010”.

O diretor comenta que compete aos jornalistas fazerem uso da ferramenta tecnológica quando lhe for mais cabível, “numa situação em que se exija uma discrição, por exemplo – ou mesmo no cotidiano, se lhe convir. Mas o bom é que eles saibam que não estão sozinhos… Na verdade, acho que o grande barato atual é a acessibilidade que uma parcela gigantes da população tem acesso à produção de registros fotográficos (e de boa qualidade, ainda por cima)”.

Veja aqui o catálogo de fotos de Christian Caselli.
Mas como assim o jornalismo constrói uma verdade?

A maior confusão que ocorre dentro desse tipo discussão das alterações nas fotos jornalísticas está no questionamento da verdade e da foto como documento. A fotografia é sempre um registro do passado, assim que se aperta o disparador, no segundo seguinte já é passado. O questionamento do uso da foto como registro talvez seja o que mais aflige os estudiosos e profissionais. A fotografia seria uma construção da verdade, levando em consideração que a matéria jornalística também constrói uma verdade.

Vejamos pelo seguinte exemplo: Houve um acidente com 3 carros. Essa é única evidência da verdade, o restante vai se materializando, sendo construído. Fazer jornalismo é como fazer reconstituição de um crime, é sempre fato passado. Assim, se constrói a foto, e assim se faz o fotojornalismo, um ângulo define qual parte da verdade será exposta.

Foto: André Americo.

Foto: André Americo.

Então porque tanta polêmica em torno de retoques e aplicativos? Nas palavras de Christian: “A fotografia SEMPRE foi sujeita à dubiedade. Seja pelas limitações do enquadramento, pelo contexto em que é exibida, do texto-legenda embaixo dela, pelo próprio título… Mesmo a edição da foto já é um elemento alterador de sentido, vide a famosa foto do Che Guevara… Isso sem falar de foto-montagens que sempre existiram. E eu questiono toda e qualquer matéria que eu leio. É claro, simpatizo mais com a linha editorial da Carta Capital do que a da Veja, mas mesmo assim eu filtro tudo. E quanto às fotografias, também faço o mesmo, independente da possibilidade do aplicativo. E ainda provoco: quem sabe um efeito, se bem utilizado, pode até deixar uma foto mais perto de uma veracidade? Vai entender…”.

Credibilidade se sustenta na realidade ou no conceito?

O jornalismo se apoia em alguns recursos como vídeos, áudios, documentos e fotografias para transmitir sua narrativa. Esses elementos também são considerados como suporte para a identidade crível que o jornalismo possui. O fotojornalismo derivou de uma arte e da vontade do homem em gravar um momento, em arquivar uma situação, coisa ou pessoa e assim como diversas profissões ele se reinventa e se sustenta com as novas tecnologias.

Impossível é ficar para trás, ignorar os avanços, as melhorias e a praticidade que os avanços proporcionam. Mas, como todo bom ser humano, temos nostalgia, saudade do passado (aquele que nem tivemos a oportunidade de vivenciar) e buscamos reinventar também aquilo que se tornou antigo, ultrapassado. As fotos estilo retrô, preto e branco, são as novas tendências,  isso acontece com a moda, com o cinema, com tudo. Nas palavras de Christian: “E sobre a manipulação da imagem… Talvez seja importante, dependendo da alteração, não enquadrar mais a imagem na categoria “fotojornalista” – sendo que nomenclaturas em geral nunca vão ter 100% de consenso. E se a imagem deixar de ser fotojornalismo pra virar outra coisa, qual o problema? Desde que valha pena, não to nem aí”.

A questão mais óbvia é o bom trabalho, que não se resume aos recursos que são utilizados, mas, principalmente, a criatividade e talento empenhados. Para Alex, os melhores ensaios fotojornalísticos são aqueles em que se supera a questão documental versus a abstração na fotografia. O fotojornalismo se destaca pelo olhar pessoal do fotógrafo que emprega sua sensibilidade na produção das suas fotos.

As novas tecnologias proporcionam uma inserção da população nos objetos de comunicação, contribuindo para um compartilhamento de ideias, de notícias, de pontos de vista. É uma visão colaborativa e isso não impede que a fotografia seja uma arte, o domínio e a apreciação se tornam presentes e ainda mais imponentes que nunca. Christian ressalta: “o que pode acontecer é que o termo “fotojornalismo” seja problematizado devido ao acesso mais fácil da tecnologia a todas as pessoas. Ou seja, que esse registro imagético diário não seja algo exclusivo de jornalistas e que não precise, necessariamente, da imprensa para ser divulgado – o que eu acho ótimo. Taí o Facebook que não me deixa mentir. E eu não vejo o menor problema em ter mais e mais pessoas tirando fotos. Claro, hoje em dia existe uma overdose de fotos no mundo, mas isso me parece melhor do que no começo do século XX, quado os registros eram mais precários. E acho isso extremamente democrático. Também sou contra a hiper-valorização da arte. Aliás, voltando a citar o facebook, cada dia eu me impressiono com a inteligência e a precisão do humor de vários “memes”; assim como a sua rapidez de atualização . E também com o desprendimento em se botar uma “autoria” no que é criado. Acho isso, em muitas instâncias, muito mais saudável e menos “pomposo” do que o que chamam de “arte”.

“Se reinventar a cada trabalho”, finaliza Christian, da maneira mais simples possível. E André complementa, sem sentimentalismo: “O lado romântico do jornalismo morreu”. Eles querem dizer que o jornalismo deve se reciclar, assim como seus agentes. Para André o fotojornalismo deve recorrer aos projetos mais profundos, como produções de ensaios fotográficos. E encerra: “O fotojornalista precisa se reinventar, porque sem as grandes reportagens, não há criação relevante.”