A História devida: um indivíduo coletivo

Gerliani Mendes

Das posições de artistas consagrados sobre a biografia, fica-nos uma ideia que parece confundir biografia com notícia de celebridade, uma história que é coletiva, que narra uma época e uma que é da vida privada. Uma linha tênue separa estes dois produtos que são diferenciáveis pelas consequências, ou seja, pelas suas contribuições para a sociedade, já que uma biografia é um ramo da história que se debruça para trajetórias de vida como forma de estudar contextos sociais. Howard Becker a define como uma peça para montagem do mosaico social.

Tentemos também diferenciá-las pelo procedimento de apuração e pesquisa. Chico Buarque desmereceu a entrevista cedida ao biógrafo de Roberto Carlos por um motivo importante: em quatro horas de entrevista, apenas duas ou três perguntas versavam diretamente sobre o rei. Falaram mais sobre censura, ditadura e a época como um todo, segundo Chico. Se fosse notícia de celebridade, a conversa seria outra. Mas uma biografia que se preze nos remete à um momento, contextualiza-nos, a partir de uma pessoa, fatos, movimentos políticos e comportamentos.


Biografados
Bons e maus profissionais existem. As herdeiras de Paulo Leminski reclamam, com razão, da abordagem pejorativa Vaz e Pellegrini dada à contracultura assumida pela família Leminski. Logo, repensar a lei, que atualmente permite censura prévia, é alho positivo se agilizar o judiciário para garantir o direito de processo por calúnia e difamação, como o é para qualquer mortal. Isso só fortalece nossa prática na escrita de não ficção, para jornalistas e historiadores porque a responsabilidade com o que se escreve deve ser pensada juridicamente. Mas todo esse espectro da vida privada, que uniu Chico, Caetano e Gil à Bolsonaro, Maluf e Feliciano- coisa impensável na nossa imaginação – têm uma verdade por trás. Nossos artistas e políticos têm um certo medo dos biógrafos que temos no Brasil, que mesmo sem grande retorno financeiro, são movidos por algo mais nas suas tramas biográficas. O exemplo que se firmou clássico é o de Paulo César Araújo, que teve seu livro vetado por Roberto Carlos, que autorizou outras duas biografias. Essa é a pior face da censura a meu ver: informações controladas, fontes mais especializadas que outras. A censura não diz que não se pode falar sobre determinado assunto mas sim quem pode falar sobre ele. Roberto separou os escritores de não ficção entre os que podiam e os que não podiam escrever sobre sua vida, autorizando Oscar Pilagalo (Roberto Carlos) Pedro Alexandre Sanches (Como dois e dois são cinco) e a Toriba Editora (Rei). Paulo, o que não podia, foi o pesquisador que bateu o recorde de dedicação e tem referências excelentes de sua capacidade: “Eu não sou Cachorro não” desconstruiu o elitismo imperante até então na produção cultural no país: mostrou que Odair José, cantor das empregadas domésticas, e toda a turma brega, tiveram mais músicas censuradas que Chico Buarque. Como negaremos essa contribuição para a história da música no Brasil?

˜O que será, que será?
O que não tem certeza nem nunca terá
O que não tem conserto nem nunca terá
O que não tem tamanho…˜

(Chico Buarque)

Não quero com isso sugerir que os biógrafos autorizados sejam menos capazes, mas mesmo que fosse François Dossê, ainda seria um biógrafo autorizado. Além das informações controladas, temos um problema não menos importante: circulação. A Toriba Editora se gaba, em sua página oficial, de ser a única biografia autorizada de Roberto e o que é pior, garante que só será distribuído 3 mil exemplares, sem reedição. Direito à informação virou um privilégio de quem pode pagar e ostentar a vida do Rei, como podemos inferir.

O vídeo Procure Saber tem um apelo pessoal grande, e se contradiz ao próprio título. Mas este apelo pessoal é exatamente o inimigo da democracia, da circulação de informação por que quer controlar o que a história tem de mais importante como aparelho reflexivo: várias versões do mesmo fato. O apelo pessoal destes artistas nos apresentam indivíduos que não percebe que só são assim chamado, indivíduos, porque cresceram numa coletividade; suas histórias só podem se desenrolar em sociedade.


Esse indivíduo acima da coletividade é frágil, assim como a sociedade sobrepostas aos indivíduos. Façamos um trato jurídico que leve em conta a falsidade dessa divisão, como Norbert Elias explica em Sociedade dos Indivíduos. O que estes artistas precisam entender sobre história para, como Paulo Coelho fez com Fernando Morais, permitir as versões sobre suas vidas, sem medo de julgamentos? E como tal liberdade nos afetará na cotidianidade, na vida privada e na maturidade da escrita de não ficção?